Diário de um investigador científico em vias de se tornar outra coisa

Onde deixei o lápis, pergunto-me, onde estão o lápis e o caderno e os óculos, o raio dos óculos, onde meti os óculos e os comprimidos? e a gilete, quem me manda ser tão calão? esta barba não cresce, barba de miúdo quase a chegar a velho, não tem jeito, barba ou pêlos púbicos, barba salpicada como pentelhos, maça-me, onde deixei os comprimidos? esta dor de cabeça, este cansaço, este sono, este bocejo prolongado, um quarto de hora a bocejar e a enxaqueca a martelar, e ninguém bonito na sala, ninguém digno de se ver, papelada, mais papelada e uma língua estrangeira e funcionários públicos que falam estrangeiro mas que se comportam como qualquer funcionário público, revirando os olhos, que maçada trabalhar. Comprimidos para quê, se já tomei quatro? o mais certo é tê-los tomado todos, não encontro nenhum nos bolsos, nem na mala, nem na casa de banho, nem dentro de mim encontro esses comprimidos, que se os encontrasse sentiria o efeito, aquela calma ou sossego, não, tranquilidade nenhuma, se fechasse os olhos adormeceria, mesmo com a dor de cabeça, adormeceria por não me apetecer fazer nada, nicles, não me apetece sequer respirar, incomoda-me respirar, é tarefa aborrecida andar para aí a viver como se fosse coisa agradável estar vivo. Uma mulher agachapa-se à minha frente e vejo-lhe o rabo, um rabo peludo mais feio do que uma testa cravejada de verrugas, mais feio do que o viver, é por isso que não se deve usar roupa muito mais larga do que o corpo, baixamo-nos e as calças destapam quinze centímetro de rabo. Uma mulher a escarafunchar num monte de papelada oitocentista e a arrotar, tão educada, a arrotar para os lados de modo a não estragar a documentação, preciosa documentação, não se pode esquecer o passado, é o que dizem, lembrar o passado é uma lição, não existe acto mais revolucionário do que recordar o passado, que seja. O rabo borbulhento da senhora tolda qualquer raciocínio e só trouxe bananas para o almoço, bananas e uma garrafa de água, o que é assaz lamentável, uma vez que se quiser ingerir alimento mais substancial serei forçado a descer uma rua de quinhentos metros, o que, dada a minha fraqueza actual, não é recomendável, seria preciso ser louco para descer e voltar a subir, mais louco ainda do que se passasse oito horas seguidas (não passei?) a olhar para a documentação com uma banana no estômago e com as visões do hediondo rabiosque da senhora professora — professora, óbvio, dotada de caneta de prata e caderno de marca francesa e cara de quem não fornica há mais de uma ou duas décadas, dependendo do ano em que deu à luz pela última vez. Não é permitido escrever com caneta em arquivos sérios, pelo menos quando não se é professor ou não se publicou a mesma tese de doutoramento em diferentes versões, e ao puxar da minha sou agarrado por dois macacos, ou então é da fraqueza, dois homens que se assemelham a macacos que me confiscam o objecto e me torcem, partem o braço com que escrevo, o esquerdo, ou então é de não comer, delírios de um faminto, já se sabe que homem de bucho vazio é homem sem préstimo.