Não vês que estou doente
/Não vês que estou doente. Repetiu. Não vês que estou doente. Não como, não durmo, ando pálido. Estes papos. Círculos negros em torno dos olhos. Este aperto no peito. O estômago embrulhado. Adoeceu com a separação. Pensava na morte. Debitava as mesmas palavras, vezes sem conta as mesmas palavras, não vês que estou doente, como uma máquina, não vês que, afirmava como um gravador, não vês que estou. Doente, eu. Perdeu o emprego, uma posição confortável num escritório desbaratada por sucessivos atrasos e faltas injustificadas. Troquei a mediocridade pelo nada. Acabado o subsídio de desemprego, aproximou-se da família, que era curta e sovina. O pai virou-lhe as costas. Não te eduquei para a miséria. Não demorou até se ter visto na rua a arrumar carros e a pedir esmola. Como os drogados, o meu filho como um drogado. Assim imaginava o pai, amargurado. Recebeu acolhimento numa pensão gerida pela tia de uma tia. Escrevia cartas deitado numa cama minúscula, encolhia-se a tremer de frio e de angústia e de pobreza e de vazio e de escuridão. O teu desaparecimento é uma rocha. Vivia num quarto infestado de baratas e de ratinhos pretos. Escondia os pés nos cobertores para não ser mordido por nenhum bicho esfomeado. Escrevia num pequeno caderno castanho encontrado num caixote do lixo. Gatafunhava sobre banalidades. Como um drogado, um inválido. O pai ao ouvido. Dirigia-se a uma mulher existente em lado algum a não ser no seu coração e na sua memória, falava a uma mulher que o desprezara. Não desprezo. Desprezo associava-se a algo negativo. A separação não tivera que ver com desdém ou repulsa ou aviltamento. A separação não tivera que ver com nada que compreendesse. Os meus sentimentos, não os entendo, não te entendo, o que me fizeste. Separação era também uma palavra com conotação negativa. De positivo havia zero, dois corpos afastados, o coração a palpitar de saudade, nada de positivo. Recordações dolorosas. Boas recordações e por isso muito dolorosas. E a última imagem. A mulher de costas, afastando-se, cada vez mais longe, entrando no táxi e acenando pela última vez, um adeus seco, sem sorrisos ou lágrimas, o táxi ao fundo, o táxi quase noutra cidade e um homem atónito, não sabendo para que lado se virar. Para dentro de um rio, para uma faca afiada, para uma caixa de comprimidos, para o esterco. Escreveu até encher o caderno. Morou na pensão até ser expulso. Morreu esquelético e coberto por cobertores e, no relvado onde uma velhota que passava o encontrou roxo, nasceu uma poça de lama que nunca secou.