Deixa-me sair contigo
/"Estou farta disto, da vida, dos cães, de ti." A esposa golpeia-me a todo o minuto com frases semelhantes a esta. Em sete anos, nunca me agarrei aos tachos, nem me mostrei romântico o suficiênte para mandar o cliché às urtigas e oferecer um ramo de flores. Passeio mal os cães. Troco as coleiras. Quanto ao meu feitio, defeitos mil. "Personalidades incompatíveis", absorvo, indisposto, que é como fico assim que ela desata a dissertar acerca do meu carácter. Procurei ajuda profissional, ajuda que me tem feito arquivar, esquecer ou superar ou agonizar com diversas fantasias do passado. Julguei que a psicoterapia fosse diferente: o indivíduo recostava-se no divã, vitimizava-se sem parança, a minha mãe isto, o meu pai aquilo, o destino mau e os amigos, nenhuns, piores, e no fim (imaginava que se chegava a um fim, que o processo não se arrastava durante anos) recebia abraços, ouvia um "coitadinho" do profissional, coitadinho que o mundo fez-te tão mal. Não desisti de encontrar um bom médico, não por culpa dela mas para lhe agradar ou mostrar que desejava ser diferente: menos egocêntrico e intolerante e o costume, o costume. Custa ouvir que podemos ser amigos, que sou doentio e paranóico. Prometer este mundo e o outro a quem sofre da mesma depressão não é bom remédio: ambicionamos possuir o universo sem esforço, sonhamos com os Estados Unidos ou com o Canadá e com impossíveis que estão à distância de um estalar de dedos. Aprendi, desconfio que deveria desaprender, que repetir sempre e nunca é típico dos depressivos. Tenho evitado o sempre e o nunca para não parecer deprimido, ou melhor, para transmitir a ideia de que, mesmo estando no poço, não me encontro tão enterrado que dele não possa sair. Ela então passa os dias nisto: tu nunca, tu sempre, tu nunca. Chegada a altura de desabafar sobre os males que nos apoquentam, ela não diz "eu", o que se torna deveras irritante. O culpado sou eu. Acreditei que era vilão, que não tinha virtudes, que deveria ser alguém muito repugnante em termos físicos. Procuro acreditar que não sou repugnante, nem feio, nem chato, nem aquele torcer de nariz ou revirar de olhos. Sou assim para ela, mulher que desejava ver-me a mudar, que me levou a tentar mudar e a compreender que para meu próprio bem deveria mudar. Evito aquele turbilhão que desemboca na vontade de suicídio: não arranjarás outra, viver sozinho é impossível, não te aguentarás. Alterar esses pensamentos para um aqui e um agora, é assim que se diz nos livros de auto-ajuda, em alguns livros, naqueles que me vêm parar à toa à algibeira. Amanhã serei diferente, o interlocutor acredita no nunca. Eu é que deveria acreditar que amanhã serei diferente, que posso mudar. Largar leis imutáveis, castigos auto-impostos. Medo da solidão e da rejeição, afirma o psicoterapeuta. Reformulo: "Você não consegue lidar com o facto de não ter podido escolher os seus pais." Você não aceita, não aceita nada. Um funeral andante.