Séneca, Troianas

Séneca, Troianas. Tradução, posfácio e notas por Ricardo Duarte. Centro de Estudos Clássicos, Lisboa, 2013. Para encomendar contactar centro.classicos@fl.ul.pt

As histórias relativas à queda de Tróia encontram-se plasmadas numa muito rica tradição literária, mitográfica e artística. Apesar de a acção da Ilíada terminar antes da destruição da cidade e de o início da Odisseia ser já posterior a esse marco, os episódios decorridos entre as duas épicas homéricas seriam narrados em outras épicas gregas arcaicas hoje perdidas, de que o Saque de Tróia (Iliou Persis, de Arctino de Mileto) e a Pequena Ilíada (Ilias Mikra, de Lesques de Pirra) são exemplo. Para os Romanos, esses episódios ganharam uma ressonância especial com a sua épica nacional, a Eneida, em que não só se narra de forma vívida a queda de Tróia, mas também se celebra a sobrevivência parcial de Tróia no exílio, figurada em Roma como continuidade. À audiência das Troianas de Séneca (leitores / ouvintes), não passariam despercebidos ecos da Eneida (em particular do livro segundo), nem a influência do livro 13 das Metamorfoses de Ovídio na composição da cena de morte de Políxena.

O sofrimento dos Troianos depois da queda da sua cidade foi objecto de dramatizações várias, mas, apesar de esparsos pontos de semelhança, nenhuma delas parece ter sido fonte exclusiva da peça de Séneca. Centremo-nos somente nas principais. A Políxena de Sófocles, que se perdeu, incluiria uma aparição da sombra de Aquiles a exigir a morte de Políxena. As Troianas de Eurípides, apesar do título idêntico, divergem substancialmente das de Séneca. Já a Hécuba, também de Eurípides, se aproxima mais em alguns aspectos: nela se trata a morte de Políxena em paralelo com a morte de um outro jovem de Tróia, Polidoro. Não chegaram até nós as tragédias romanas de tema troiano. Supõe-se que a Andrómaca Cativa de Énio trataria as mortes de Políxena e Astíanax. O Astíanax de Ácio representaria a tentativa por parte de Andrómaca de esconder o filho nas montanhas, e não no túmulo de Heitor.

A hipótese mais provável é Séneca ter composto os seus dramas com grande independência relativamente aos precedentes literários de que pudesse dispor. Com efeito, se até ao momento ainda não foi possível esclarecer inteiramente quais as fontes que terão sido utilizadas pelo filósofo para compor as suas tragédias, em muito devido à perda quase total da poesia trágica latina anterior à de Séneca, o que torna praticamente irrealizável averiguar acerca do vínculo da sua obra com modelos nacionais; com «Senecan Drama and its Antecedents», Tarrant procurou demostrar que a tragédia ática do século v a.C. foi, em muitos casos, uma fonte remota para Séneca; que as peças de Séneca apresentam parentesco com uma forma cuja evidência mais antiga a ter sobrevivido é a Comédia Nova; e, por fim, que a concepção senequiana de estrutura e estilo dramáticos, bem como da generalidade do conteúdo das peças, teria sido inspirada, sobretudo, por autores latinos da época de Augusto.

As Troianas distinguem-se entre a produção trágica de Séneca, pelo vasto rol de personagens, variadas, quer em nacionalidade (gregas e troianas), quer no tipo. Dentre elas não sobressai uma personagem dominante ou central, como Hércules ou Medeia nas peças homónimas, apesar de Hécuba ser um símbolo da comunidade troiana. A peça apresenta ainda um enredo duplo, centrado ora em Políxena, ora em Astíanax.

Não obstante essa multiplicidade, a peça passa uma ideia de unidade, patente na sua estrutura. O duplo enredo de que falávamos encontra-se construído em paralelo: cada um dos enredos inclui, primeiro, a exigência de que um jovem troiano seja sacrificado; em segundo lugar, uma feroz oposição a essa exigência; em terceiro, a narrativa de cada morte.

Outro elemento unificador da peça é constituído pelas referências, por parte, quer de Gregos, quer de Troianos, à Guerra de Tróia. A peça evoca constantemente, directa ou indirectamente, episódios da guerra – desde o seu despontar, com o julgamento de Páris, passando pelo rapto de Helena, pelo demorado ancoradouro da armada grega em Áulis, até ao décimo ano da guerra. Mencionam-se ainda a disputa de Agamémnon com Aquiles, as mortes de Heitor e Aquiles, o saque da cidade e o assassínio de Príamo. Apesar de centrada nos Troianos, a peça também se liga, assim, à experiência dos Gregos na guerra, no passado e no presente.

Dominante nas Troianas é a experiência do sofrimento, do luto, da dissolução de identidade. A peça poderia ter sido concebida de modo a se centrar apenas nos elementos passivos do sofrimento; mas, ao invés, Séneca investiu-a de uma qualidade activa, ao mostrar como a tragicidade nasce da dinâmica das interacções humanas, da importância do poder na vida. Pirro vê o poder como absoluto e defende que a vitória militar garante ao vencedor um domínio completo sobre o vencido (333, 335 e 344-346). Já Agamémnon abraça o ponto de vista contrário (258-275), que a queda de Tróia demonstra a fragilidade do poder (lição proclamada por Hécuba logo no início da peça). Com efeito, como em tantas outras tragédias, um dos temas principais nas Troianas é a volubilidade da Fortuna e, consequentemente, a posição instável dos detentores do poder. Tema com esse correlacionado é a dependência da humanidade, vencedores, bem como vencidos, dos fata (352, 360, 368, 510-512 e 528).

O sofrimento que ecoa por toda a peça é partilhado pelo vencedor e pelo vencido. Quer para Hécuba, quer para Helena, que apenas desejam a libertação que vem com a morte, a vida é uma desgraça insuportável; para Pirro, uma luta obstinada, egoísta e cruel; um trabalho desumano de autopreservação para Agamémnon e Ulisses; para Andrómaca, uma luta vã e moralmente ambígua na tentativa de preservar a família real troiana; alegria, essa, para ninguém, nem para vencedores, nem para vencidos. O mundo da peça é oprimido por uma fortuna volúvel, deuses cruéis, portentos estranhos e por um destino inexplicável. Um mundo em que liberdade e felicidade são obtidas apenas no momento da morte, um mundo para os vivos apenas suportável, ou pela crença em ilusões (Andrómaca, Astíanax), ou pela esperança na aniquilação total (Coro, Políxena), ou pelo distanciamento mental e emocional relativamente ao horror que o envolve.

Além da experiência da brutalidade da vida, vai crescendo na peça a percepção, primeiro transmitida por Hécuba, da morte enquanto refúgio: pese embora a sua crueldade, a morte de Príamo representa a liberdade, preferível ao cativeiro com todas as suas indignidades (142-155). Esse tema é retomado mais à frente na peça, quando Andrómaca encoraja o filho a ver a morte como libertação, uma forma de se unir aos Troianos livres (790-791). Com efeito, quer Astíanax, quer Políxena, enfrentam a morte com coragem, ao jeito estóico, abertamente desafiando os seus algozes.

O tema da morte como libertação é tratado com um diferente matiz, mais sombrio, na segunda ode coral, em que se afirma que a morte põe termo à consciência e existência humanas. Ora, esta visão (negativa), da morte como cessação, vai contra aquela veiculada pela imagem de Príamo feliz nos Campos Elísios, da morte como pórtico para um post mortem (visão positiva). Ainda assim, qualquer uma das visões oferece um valor consolatório para os vivos. Nos seus tratados em prosa, Séneca, sem se decidir por nenhuma das opções, enfatiza, porém, a consolação que ambas podem oferecer (e.g., Consolação a Políbio 9). No caso das Troianas em particular, as mortes corajosas de ambos os jovens troianos provam o mesmo ponto: Astíanax toma a iniciativa de se atirar do alto da muralha na expectativa de ir ao encontro do pai e dos restantes Troianos, ao passo que Políxena, é lícito supor-se, morre na expectativa de que não sobreviva de si nem uma mera sombra que pudesse vir a ser desposada por Aquiles nos Infernos.

É sobretudo na obra filosófica de Séneca, em que se incluem os Diálogos e as Cartas a Lucílio, que a questão da morte é tratada com grande acuidade. Nela se propõe uma variada colecção de soluções, que vão, com efeito, desde a negação completa da imortalidade da alma, até à crença numa sobrevivência ilimitada, de tipo mais pitagórico do que estóico. Não é possível determinar se terá havido, e qual terá sido, a evolução do pensamento senequiano nesta matéria. O mais certo talvez seja admitir que Séneca nunca terá fixado definitivamente uma solução, hesitando antes entre várias possíveis e equacionadas. Parece, no entanto, poder afirmar-se que Séneca não admitiria, pelo menos, as explicações tradicionais, «folclóricas», do problema, rejeitando, como tal, as crenças no Tártaro, nas punições mitológicas do tipo das de Tântalo, Atreu, Ixíon, Sísifo, entre outros célebres supliciados, muito embora as tenha admitido na sua obra, mormente nas tragédias, a título de mero artifício literário, porém.

 

Excerto

Mensageiro
Resta uma única torre da grandiosa Tróia,
que Príamo costumava frequentar, e no topo da qual,
sentando-se nas suas mais elevadas ameias, como juiz da guerra,
controlava as linhas de batalha. Nesta torre, com o neto sentado
ternamente no seu colo, enquanto a ferro e fogo Heitor afugentava
os Dánaos postos em debandada por um medo terrível,
o ancião mostrava ao rapaz os combates do pai.
Esta torre outrora famosa e glória da muralha,
hoje um cruel rochedo, é rodeada por uma multidão de chefes
e de populares concentrada em todos os lados; abandonando as naus,
aí se reúne todo o vulgo. A uns, uma colina distante oferece
uma vista desafogada sobre o amplo espaço;
a outros, um alto penhasco, em cujo topo
a multidão se equilibra levantada nas pontas dos pés.
Um pinheiro sustenta este, um loureiro, aquele; uma faia, um outro,
e a floresta inteira estremece com os populares pendurados.
Um sobe ao extremo de um monte escarpado,
e aquele coloca-se sobre um telhado meio queimado ou sobre uma rocha pendente
da muralha derrubada, e há até mesmo um bárbaro espectador
(sacrilégio) que se senta sobre o túmulo de Heitor.
Através do espaço completamente apinhado o Ítaco avança
com o seu passo orgulhoso, levando o pequenino neto de Príamo
pela mão, e não é com um passo indolente que o menino
se dirige ao cimo das muralhas. Quando se deteve
na parte mais alta da torre, lançou para um e outro lado o olhar penetrante,
intrépido em coragem. Qual, de fera ingente,
a pequena e débil e ainda inofensiva cria
que já, todavia, ameaça com os dentes
e ensaia mordeduras vãs e intumesce de raiva:
assim aquele rapaz, preso pela destra do inimigo,
se enche de orgulho, feroz. Ele tinha comovido o vulgo e os chefes
e o próprio Ulisses. De toda a multidão, só não chora
aquele que é chorado; e, enquanto do fatídico adivinho as palavras
e as preces Ulisses pronuncia e convoca para os sacrifícios
os deuses cruéis, ele saltou por vontade própria
para o meio do reino de Príamo.

vv. 1067-1103