Glória humana
/Reverdecer. Não me ocorreu outra palavra naquele momento. Regressar à juventude com outro corpo e sem as doenças e as tragédias a que me expuseram. Poderia ter dito renascer. Sair do ventre de outra mãe. Resumir os meus desejos num vocábulo, eis o exercício a que infinitamente voltamos nas nossas consultas. O doutor e eu. Negamos o destino, gozamos com a leitura dos astros. Aprendemos, ou melhor, aprendo o valor do eu, do pequeno eu. Reaprendo a mimar a criança e a mudar o pai / cassete que em mim se impôs como lei. Fundir a cor verde com os raios solares e nascer esquecido do sofrimento. Ser eu mas outro. Reverdecer pareceu-me a escolha certa. Não tive tempo para grandes reflexões. “Diga, diga.” Nem respiro por causa da sua mão, dos seus dedos trementes, do som das pancadas dos seus dedos no tampo da mesa. O doutor põe-me em sentido. “Hera, verde esperança a galgar a parede branca.” O terapeuta espera que responda sem matutar. "O seu problema é no coração", afirma ele, mentiroso, artista da charlatanice. Saio do seu consultório revoltado comigo mesmo. "Se lhe pregasse uma focinhada, queria ver onde meteria o ego, o superego e o id", penso. Se deixasse de obedecer a determinadas convenções, levaria uma existência mais tranquila. Se me livrasse das convenções sociais. Preservo o canastro do doutor que me suga quarenta por cento do ordenado. Isto é ser homem? É no café do Cardoso que exumo os meus fantasmas, é nesta instituição de caridade que, esvaziando copo atrás de copo, resolvo os meus problemas, os tais problemas do coração. Para isso muito contribui a anafada Vanessa, tão generosa a dar à anca quanto a emprestar o ouvido. "Dá-me uma razão para continuares a ir às consultas", pede a imberbe, sábia em tantas matérias mas tão ignorante em termos de baixas médicas e de atendimento ao público. Não me apanham de novo naquele supermercado. Atender pretos, chineses, ucranianos e velhos tesos. Vim ao mundo com uma missão, ainda não descobri qual, mas certamente não consistirá em passar oito horas dentro de um centro comercial a ser insultado por todos e mais alguns. O Cardoso, ou melhor, o filho do Cardoso, o Cardoso Júnior - o sénior finou-se há uma mão cheia de anos-, meu camarada desde os tempos de liceu, sugeriu-me mais do que uma vez que deveria comprar uma caravana e lançar-me estrada fora arranhando as cordas de uma guitarra e arrebicando os dias que me restam, que são muitos, com cuecas de mulher de todas as cores, tamanhos e feitios. Sacar o melhor de mim, a minha intenção ao dizer reverdecer foi enfatizar esta necessidade de libertar o melhor de mim. Libertar o melhor de mim que nunca existiu. "Percebeu, doutor?" O homem sair de si mesmo, superando a angústia e o medo, abdicando do monismo - não é monismo ou monista, é mono: macaco, macambúzio, estúpido, bisonho, sensaborão. Do deveria ao gostaria vai uma distância considerável. De tanto ser corrigido, aprendi a não dizer devo, deveria, ter, tenho, teria. Não me posso. Não gostaria (eis a forma como se evita uma depressão: com um gostaria em vez de deveria ou teria) de ficar preso a sonhos, a meros sonhos impalpáveis. Quero a Vanessa, mas não só a Vanessa, todas as Vanessas, e não só as Vanessas, as Marlenes, e não só as mulheres, quero dinheiro. Mais: quero ser eu.