NÂZIM HIKMET, EM FRENTE, DE NOVO, AO MONTE ULUDAG

(para Vitor Silva Tavares)

Aquela que traz a lua maravilha-me,
venha ela de Salónica, de Esmirna, ou de Ankara
– fico-me a olhar-lhe a boca, aquela falha
clara que no fio dos dentes lhe ilumina o sorriso,
e sei que não há carcereiros que me tolham o passo,
nem prisioneiros que não possam libertar-se.
A ronda cinge o cárcere, o meu povo, no seu intenso
turco, tenta erguer-se da infrene dominação que o subjuga,
mas, entre os muros, o meu sonho vem dessa lua
que esta mulher me entrega quando ponho
os meus olhos nos seus e escuto o que me diz
como se estivesse a ouvir o coração.

Escuto-a e uma peça de prata toca a minha cabeça,
e assim ando a monte, assim a noite
é um vasto vidro despolido onde transito
quando o silêncio cresce nas masmorras de Bursa
e embranquece cada um dos meus cabelos por esta sedição
inominável. Não, não sou um fugitivo a correr as sete partidas do mundo
– quem me vigia sabe que sou um poeta
e que todas as palavras me pertencem, da Anatólia a Hatay,
de Istambul a Adana.

Ah, em Adana vi o cavaleiro turco
em busca dos mortos, de espada desembainhada, erguia
a bandeira vermelha e perguntava pelos gregos,
os gregos que dormem na terra da Anatólia,
a acusá-los sardonicamente,
porque se deitaram
ao lado dos turcos que morreram
na terra onde as magnólias florescem
sobre os telhados das casas.

Ali recitei o Corão, balouçando-me nos joelhos, para a frente
e para trás, depois do muezim entoar o azan
– que os meus pés descalços, a sua planta calosa,
mostrem por onde andei e como, em menino, ouvi
canções de embalar, poemas mevlevis, e deixei de ser crente
na esperança divina, porque tudo o que faço está para além
de qualquer recompensa, para além do temor do castigo,
e trago comigo um revólver carregado na algibeira das calças,
de que sou incapaz  de me servir, enquanto canto.

Pela causa posso cegar, ficar coxo, estropiado,
submergir pelos piores pesadelos, aguentar os nevões e o frio
da avenida Tverskoi, discutir com o amigo Maiakovski a envergadura dos versos,
ir de Tiflis a Kars, depois a Gálata e Pera, depois a Ankara, a enfrentar
o Tribunal Especial, e ser condenado ao segredo,
essa cúpula de alvenaria no meio da prisão com grades de ferro na janela,
mas sem vidraça, onde o chão é de cimento e neva dentro da cela,
e onde, a qualquer momento, posso voltar ao grande exílio,
posso voltar à avenida Srasnoi, onde bato
os pés sobre a neve e Fédia Seis Dedos, da bacia do Volga,
regateia comigo o tamanho dos peixes como se regateasse
o tamanho da fome dos seus doze anos sujos e esfarrapados,
a quem, com um sorriso, ofereço o meu último cigarro,
a lembrar-me da nudez das coisas, da raiva,
das mulheres de Alepo e de Salónica,
para, por fim, trocar com ele o pequeno peixe
que lhe dei em sigilo por outro um pouco maior.

Vá, agora, pergunta-me quem sou, afirma comigo
que há anjos incaptáveis e que nas estrelas arde o surdo
movimento do mundo, diz que nelas arde o implausível, e aos camaradas
de Esmirna nada mais resta do que a corda em que os enforcaram e os ossos
brancos pelo flagelo da amargura, enquanto eu me pergunto
como se enlaçam os destinos, que rumor magnético das pedras
nos une às platibandas que crescem sobre o mar – dentro das pedras
há pulsações, entranhas vivas, sedimentações de sangue, de humores,
tal como nos homens há alegria e tristeza, e nostalgia,
mas nenhum tirano há que me pacifique,
nenhum déspota com o seu gorro escarlate,
a sua cara estúpida,
as suas 800 concubinas.

Silencioso e concreto, o cavaleiro vermelho avança,
venha ele de Salónica, de Esmirna, ou de Ankara,
e eu, tal como ele, estou em toda a parte, a abrir buracos nas rochas,
a abrir buracos nos buracos, a abrir o peito
à afeição peculiar que me adensa o sangue
e mantenho em favor de quem vai comigo,
e olha a lua,
e sofre da fome universal
dos que nada mais têm que um desconcertante sonho de pão
na aridez implacável do deserto,
o pão que pertence à maioria, mas a maioria não tem
– digo que estamos de costas, que disparam sobre nós quando estamos
de costas, que o tapete está deitado de costas quando dorme,
que a casa, adormecida, está deitada de costas sobre o mundo,
digo que o mundo está adormecido de costas,
tal como as acácias estão adormecidas de costas na calçada,
tal como os olhos das janelas, dos telhados, da luz oblíqua que os toca,
tal como aquela que traz a lua  e me maravilha,
venha ela de onde venha, com a falha clara
na fieira dos dentes a iluminar-lhe o sorriso.

Não nascera ainda e já a miséria me era insuportável, a vaidade asinina

seguia os carreiros de gravilha da Europa, ia Abdul Aziz,
senhor do Império Otomano, ao lado de Napoleão III, em Paris,
e eu via tudo, Abdul Aziz cevava-se
ao passar revista aos vinte e cinco milhares de tropas
no Arc d’Étoile, com as roupas europeias verde-escuras e o fez rubro
na cabeça, com a sua fraqueza, a sua idiotice, a sua ignorância, filho
de uma mãe prepotente, mas chefe de uma grande realeza,
bastando-lhe mover um dedo para mover marinhas e exércitos,
com o poder de vida e de morte sobre milhões, a comer, a dormir
e a espreguiçar-se, enquanto um exército de cobradores de impostos espoliava
o povo, a esborrachar-lhes as caras contra as barras, porque aqui é assim,
um homem rouba um pão e cortam-lhe a mão direita e a perna esquerda,
e pregam-no na praça para servir de exemplo.

Agarro-me ao concreto, estou a nascer,
os meus ossos estão, ainda, em formação,
quando tiver dentes porventura alguém mos partirá,
esta viagem é extravagante, não se sabe
o que decide a sorte de um poeta, serei um cão, uma raposa, uma cegonha,
nunca se sabe o que será um poeta quando alguma coisa falta ao mundo,
e, entretanto, passam uns anos na minha juventude e morre-se,
morre-se de verdade em Gallipoli,
entre os cadáveres dos turcos só há o ar pestilento,
só há as moscas grossas e verdes num enxame terrífico
a sobrevoar os corpos contorcidos, apodrecidos,
enquanto o que resta é só a ignorância dos poderosos,
a sua ganância, a sua sede incomensurável de domínio,
a acomodarem-se em sedas, a encomendar gráceis iluminuras
de minaretes e príncipes, de palmares e princesas,
enquanto a artilharia sobe de tom, sobe sempre de tom,
com os francos e os ingleses a morrerem-nos à frente dos olhos,
embora a nossa derrota pareça iminente e todos acabemos a tirar piolhos
das costuras das fardas e, para os cadáveres que se amontoam,
haja e não haja setenta e duas virgens para nos dar prazer.

Assim aconteceu mais tarde, aquando da invasão dos gregos,
que tudo querem de nós, querem, afinal, Bizâncio, o seu antigo mundo,
querem negócios estes negociadores implacáveis
que são capazes de negociar com quem lhes assassinou a mãe,
querem terras, um nunca acabar de terras que dizem pertencer-lhes,
o incêndio a alastrar em 1922, a fuzilar-nos:
a dominação fará de nós não mais que estrangeiros
na terra onde nascemos, uma terra de sultões e de paxás,
uma terra de linces desapossados de tudo, enquanto, nas trincheiras,
cheira a cadáveres, cheira a cordite, cheira a merda, cheira a mijo e a suor,
e chega ao auge o desejo de matar, nas granadas de estilhaços, no zunido
das balas, no baque das bombas, no seu ronco mortífero, enquanto a realeza,
longe da planície de Divrin, longe dos soldados sem rosto que só o cavaleiro
de gorro vermelho sabe quem sejam, se banqueteia com as escravas
circassianas, georgianas, eslovacas, núbias, e fumam o nagrilé,
e mandam que lhes preparem o banho, o chá de maçã, o café preto,
enquanto Salónica está perdida, e está perdida Esmirna, e Creta, e o mar,
e o mais que nos roubarem.

Eu ardo, afirmo-vos que ardo, pressenti que só se ardêssemos
a treva se dissiparia,
de cabo de guerra a paxá Musfatá Kamal será Atatürk,
herói dos Dardanelos, pai dos turcos, genocida dos arménios,
envio-lhe uma carta para que seja revogada a injustiça que sobre mim recaiu
enquanto homem e cantor resistente, mas não me sento à sua mesa redonda,
serei poeta continuadamente,
a cela é um vasto território de quatro metros quadrados de betão,
um universo para o meu poema e, por isso, todas as noites invento
um sopro para a noite, um sopro ardente,
e nunca há noite,
e sei que não há carcereiros que me tolham o passo, nem prisioneiros
que não possam libertar-se, ainda que me queiram enforcar,
quem sabe se numa árvore igual à de Guernica, calcinada
pelos bombardeiros alemães, ou algum arbusto
rasteiro de Adis Abeba imolado pelos italianos – se escravo sou,
digo que todos os escravos são virtuosos, pedintes, pregoeiros que sejam,
cavaleiros marcados pela guerra e pela morte sob todas as formas,
embiocados na máscara mortuária que a todos consome
e que nenhum dervixe rodopiante pode harmonizar, um poeta,
pese embora a malária e a disenteria, cantará para sempre.

Ah, o negrume da minha cela é luminoso,
os mortos mordem-me os pés, vejo-lhes o coração a bater
nos peitos destroçados, vejo as feras que os consomem e tomo partido,
estudei na universidade comunista e vou na grande onda
que ulula, e berra, e vocifera, e canta – levanto-me pelos mortos,
invectivo as forças obscuras, castigo a infâmia para além do inimaginável,
e o impensável é a queimadura da violência, o rufo das granadas, a rajada
das armas, o estrondo dos tanques, os esquadrões em linha como arganazes
domesticados a degolar à baioneta, a amontoar cabeças em cestos de vime,
a lançar gasolina sobre uns quantos camponeses capturados,
uns quantos deserdados,
a tocar-lhes o lume, a violentar-me,
a mim, que nunca estive na guerra,
mas nela estive todos os dias da minha vida.

Vá, afirma comigo o que ambos sabemos,
diz que és a nuvem que eu sou, que o comboio nos leva,
que batemos às portas consecutivas do mundo,
que depende de nós repartir o pão que não temos,
que os melhores dias são os que ainda não chegaram,
que é fácil esperar pela morte, assim como é fácil
abrir as grades pelo lado de dentro, ainda que pelo lado de dentro,
tal como pelo lado de fora, se possa erguer
um arrazoado de pistolas automáticas e haja carrascos
por toda a parte –  até dentro de ti, montanha.

Ah, aquela que traz a lua maravilha-me,
venha ela de Salónica, de Esmirna, ou de Ankara
– fico-me a olhar-lhe a boca, aquela falha
clara que no fio dos dentes lhe ilumina o sorriso:
e estou em greve de fome, a modelar na prisão
as estacas que se plantarão no globo, e sei que as crianças
levantarão os estores para que a luz circule à superfície da terra,
e com o luar chegue a luz da humanidade;
os estores, tal como as estacas, são negros, tal como a luz que aqui há,
mas em Bursa aguardo como um cargueiro ancorado,
virão as crianças e entregar-lhes-ei o coração,
este pobre coração talvez derrotado pela arteriosclerose,
a nicotina, as dores de fígado, o infortúnio,
mas sempre vermelho como uma maçã, sempre vermelho
nas mãos das crianças que me sorriem do mundo,
crianças já nascidas e crianças por nascer,
enquanto eu morro em Moscovo,
com o luar no rosto, essa luz
que entretece a manhã e vem de ti, amada.