FLAN NAPOLITANO
/Os satélites azuis giram à volta do átomo, tornam-se cor de baunilha quando adormecem sem deixar de girar. À volta do núcleo são quentes como animais, adoçam a pele que é um começo … À volta do núcleo as células riem-se, como marinheiros na luz molhada. Na rota que fazem, a luz bombeada por um sol interno, um grande sol central. O sangue bombeado pelo coração. A tua pele sabe a luz – dizia Crocodilo mais tarde. Cada vez mais quente a pele procura outra pele: um limite maior, um começo.
Podia adivinhar a obsessão seguinte e no ato de a prever, evitá-la. Um novo caminho com uma obsidiana quente no bolso. Violeta de Gand vê o homem do outro lado da rua. As manchas (Porquê?) Na pele e debaixo na carne. É uma observadora atenta, está a criar um homem porque o vê. Sente segurança… A corrente do sangue que avança seguro. Na sua respiração sente a respiração do homem que está do outro lado. Debaixo da sua pele os satélites azuis: dançam se o núcleo dançar, fogem se o núcleo fugir, morrem se o núcleo morrer. Riem-se, agora riem-se com mais força.
A tua pele sabe a luz…
Se giravam à volta do átomo era porque aí queriam estar – o mesmo era dizer que eram completamente imprevisíveis, honestos e livres: entregues aos braços, habitavam o desejo desde o núcleo, soprados de vida – tudo aquilo que gira dentro, que nos liga ao que está fora. Os satélites azuis, nos músculos dos remadores do navio de Argo. Cada estrela, um remador que avança pelo céu e debaixo da pele. A constelação agora debaixo da pele. O navio de Argo seguro na corrente sanguínea.
Os astros dentro do corpo, só mensageiros de um Sol cada vez maior –A mensagem era só a chegada de cada mensageiro – O chegar seguro de cada mensageiro. A sua rota também mensagem.
Não diziam nada quando chegavam.
Uma constelação mulher, a luz azul da saia.
Pontilhado o seu corpo no céu. Se ela quiser entrar no barco que avança pede aos remadores que parem.
Acende um arco iris debaixo da pele. Uma galáxia homem aproxima-se. O fio das estrelas que forma a ereção. A cauda dos cometas mais acesos. Ali uma galáxia autista, minga se ninguém a vier salvar. Os remos do navio de Argo avançam como ambulância.
Quem a lamber dirá que a pele sabe a luz, a uma janela sempre aberta, a suor, a partida, a estrada, ao sal da potência humana. Um olfativo diria: nunca os satélites dançaram tanto - Nunca as células se riram tanto - A mesma dança no corpo, a mesma dança no céu.
Viu-se ao espelho, mas num homem – Quando os olhos são o espelho da alma e os amigos o espelho de deus. Não o vidro trabalhado para refletir, o eco das formas e cores que lhe apresentam. Um homem – Ali à frente, a comer um flan napolitano – Entre uma paragem de autocarros, a banca de um vendedor de batatas fritas. O óleo quente, a ferver – Parece uma explosão. Eu sou aquele (Pensa Violeta de Gand).
Eu sou aquele (enquanto olha para Crocodilo) quero que ele esteja dentro de mim.
Temos países, economia, controlo ideológico da economia, alguém que a controla – Segue leis, ouço as vozes daqueles que as fizeram. Mas quero que ele esteja dentro de mim.
Um pudim negro. Os dentes brancos do roedor – Podia ser uma alegoria – Desenvolvê-la – Ser seduzida pela minha ideia. Aceitar o chamamento de um brinquedo interno e aí ficar – na injeção paralisante, inibidora que é esta minha ideia. Parece que estou a nadar, mas estou a tornar-me uma concha – A pérola sedutora da minha ideia. Fecho-a e neste fechar (ao mundo) não ver o espelho. Fechar lento.
Giro à volta do que quero. Ali a linha dos satélites a formarem um veio azul. A potência do pulso. O meu coração gira à tua volta. E na sedução desta frase adormecer. Prever o futuro é unicamente construí-lo. O homem com manchas na cara é agora o meu espelho. Despersonalização, identificação: O sentimento de pertença a um núcleo… Há um novo animal que seduz: um homem que chamaram Crocodilo. Acabou de sair da prisão. (começa a fábula) Submergem os seus olhos nas águas sujas de uma vida estanque, uma história imóvel, breve, toda a potência bloqueada (uma vida menor). Olhos desvitalizados, seguem um pathos natural que ele parece não controlar: inibir toda a potência, submergi-los, afogá-los numa memória, a consequência natural. Não que se fechem para sempre, só que pareçam sempre fechados – Abertos só para dentro. Eu sou ele (Pensamento de Violeta). Vagueia o Crocodilo entre a barraca das batatas fritas e a paragem de autocarro. Submergido num lago interno. Estanque – comer, ir para um novo sítio, começar do zero. Violeta observa-o. Presa potente, sente os satélites mudarem de cor, vermelho-deserto, giram, giram mais rápido, mudam de cor, na expansão do desejo estão mais quentes - Eu sou a expansão do meu desejo, habito-o. Observa o seu espelho – eu sou ele. As suas manchas na pele (feitas de mudança) – por isso na prisão chamavam-lhe crocodilo. É assim:
Meteu-se com gente errada. Os satélites parados, inibidos – mas agora dança numa água nova – satélites de água giram à volta dos átomos da água – Giram e por isso são água.
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Crocodilo avança por uma estrada que não existia quando ele entrou na prisão (ou então surgiram novas casas, novos locais comerciais e agora não a reconhece). Caminha ninguém o espera. Pode ir para uma casa onde tem familiares num grau afastado, ir a casa de antigos amigos, pedir um emprego a este ou aquele. Vai até à central de camionetas. No caminho vê uma casa pintada de cor-de-rosa, uma cruz no telhado ao lado de uma antena enferrujada (parece um filtro). É um tabernáculo, uma sede de seita religiosa com contornos obscuros, um germinal de fantasmas aborrecidos nas reuniões de domingo. Sai música de dentro do tabernáculo – E na parede está escrita uma frase – És pó e pó voltarás a ser – Crocodilo olha para a frase pintada a negro no fundo cor-de-rosa. Os seus astros aceleram, satélites rápidos, há tanto tempo não sentia isso. Ri-se sozinho, descontrolado, há tanto tempo que não se ria e agora um riso animal, sincero, cheio. A expansão torna-o doentio, ri-se sozinho. (fábulas mas com pessoas, os animais mais honestos – até o falso moedeiro era honesto) e aqui Crocodilo ri-se. Riso paralisante, assimbólico embora dentro dele possamos ver uma alegoria nova. Riso que se torna negro e duro como um pudim negro. Quero comer este pudim com os meus dentes brancos – mas este pudim está fora de prazo. Foi feito no tempo de Homero. E eu com tanta fome. Eu que sou pó e vou voltar a ser pó só quero comer este pudim negro (é o meu destino – procurar todas as trevas – comer os pudins mais negros). Procuro os pudins mais antigos, cozinhados nas águas estanques do Nilo. Germinal de bactérias do Antigo Império. Pudins negros onde não entra a luz, onde não há nenhuma esperança. Pudins obscuros, completamente negros. Preciso de botas negras para comer este pudim. Tenho fome de negro. Posso entrar nesse tabernáculo com um único livro sagrado, carcomido, as páginas amarelas. Obsessão, sair dela. Entrar no templo e trincar os braços gordos dos fiéis - É um crocodilo de instintos rápidos. E ali, a dois quilómetros da prisão, o pastor dessa igreja telefona para a polícia. E no mesmo dia voltar à prisão. Ideia sedutora a da perda. Ou então continuar a caminhar. Começar uma vida nova. Ou então ser pó (e voltar a ser pó) comer o pudim negro feito de pó (o pó mais negro) e a água suja da literatura mais morta. Pudim negro e alegórico de tudo o que é Antigo e mau. O pudim dos erros humanos. O pudim cozinhado pelos piores traidores, falsificadores de moedas, ladrões, piratas alexandrinos, assaltantes de pirâmides, traficantes de relíquias, homens que destroçaram e acabaram com outros homens, o pó mais negro dos homens mais negros. Na parede cor-de-rosa, a frase cada vez mais viva, como um néon bailarino, as letras dançam. Mas Crocodilo – resumo: era um cocainómano, foi preso por assaltar uma carrinha de transporte de valores. À Prisão vinha vê-lo a sua irmã. Uma vez por semana. Trazia-lhe algum dinheiro que dava para continuar a consumir. Mas a irmã trazia cada vez menos dinheiro. Ele fazia pequenos trabalhos, limpar as celas dos outros, ir-lhes fazer recados. Um feudalismo dentro da prisão. E aí começa a fábula, Já estava a dever muito dinheiro. Isso aumentava a dependência. E o aviso, uma semana para pagar. A sua irmã vem, pede-lhe dinheiro, mas não tem. A irmã agora tem de olhar pela vida dela. Não consegue o dinheiro da dívida dentro da semana. Implora-lhe. Nesse mesmo dia vê o que acontece aos que não a liquidaram. Água a ferver em cima do corpo, os devedores castigados no pátio da prisão. O grande balde de ferro. A água a ferver. Os gritos. Falta um dia, está desesperado, amanhã vão chamá-lo. Nesse dia um ultimato, diz que vai fazer tudo, pede mais dois dias. Não consegue dormir. Chamam-no, levam-no para o pátio, despem-no. A partir desse dia e pelas queimaduras com que ficou no corpo, a pele áspera, as manchas para sempre, passaram a apelidá-lo de crocodilo. Mais dois anos e quatro meses e saiu. Aí estava em frente ao tabernáculo religioso. Continuou até à central de camionagem. Entrou num autocarro aleatório. Chegou ao destino. Não reconheceu pelos vidros a cidade onde tinha chegado. Resultava bem. Saiu da central, caminhou pela cidade. Contou as moedas que tinha no bolso. Estava ao lado de uma paragem de autocarro. Viu a vendedora de pudins, na barraca ao lado da paragem. Flans napolitanos, tinha fome, comprou um. Estava com o copo de plástico na mão, o pudim a meio. O pudim da cor do sol. Do outro lado da rua o sangue ri-se ao chegar aos dedos: Antecipa já a chegada de outros dedos. Crocodilo prevê que alguém vem falar com ele.
Violeta de Gand observa-o - ele sou eu. É o meu espelho, um reflexo, também eu. Ali o crocodilo a comer o flan, Fora de prazo talvez, mas de um passado melhor: um flan renascentista da cor do sol. O caramelo torrado a derreter na boca de Crocodilo. A baunilha parecia drogá-lo. Os satélites de dentro a girarem mais rápido. Do outro lado da rua, a mulher que o observa como alguém que já lhe pertence, que é seu, e vê naquele momento algo que já passou há muito tempo na vida dos dois. O flan napolitano, o seu sabor transformado na memória.
*A personagem principal deste texto é desenvolvida no conto: “Crocodilo: Narrativa de duas faces como as moedas do Vaticano” em Créme de la Creme: Porto, 2011.