Entrevista a um talento nunca publicado
/Encontrámos o escritor numa tasca suburbana de boca colada ao gargalo da garrafa de cerveja e a atirar tremoços ao empregado de mesa — animal em vias de extinção conhecido pelo farto bigode, pela sovaqueira suada e por um linguajar cravejado de anedotas e de salpicos de asneirola. Conversava-se sobre o Benfica. O escritor, adepto do Porto, assume-se como um exilado. Um azul no meio de vermelhos, como diz.
Antes de mais, obrigado por nos ter recebido. É uma honra podermos falar consigo. Permite que gravemos a conversa?
Permito, permito. O prazer é todo meu. Não estou nada habituado a dar entrevistas. Não gosto de aparecer em público. Não gosto do público. Nem de jornalistas. Nem de nada. Para ser sincero, só aprecio cerveja, putas e este dinossauro farfalhudo (aponta para o empregado de mesa). Mas quando recebi o seu telefonema, senti que não poderia recusar. É daqueles sentimentos que não consigo explicar. A última vez que fui acometido por um destes sentimentos foi na semana passada, dentro de uma discoteca, quando esmurrei um sujeito que se roçou em mim na pista de dança.
É uma notícia em primeira mão. O escritor frequenta discotecas.
Não me interprete mal mas está a fazer confusão. Eu não frequento discotecas. Detesto discotecas. Detesto tudo. Só estou aqui porque um homem precisa de sair à rua.
Mas acabou de afirmar que esmurrou alguém numa discoteca.
Esmurrei, pois. Estava com uma febre. Não vou a discotecas. Vou só àquela. Gosto de ler no meio da confusão. Ou melhor, detesto ler. É tudo medíocre. Detesto mediocridade. Não leio nada. Mas costumo ler o jornal na discoteca.
Lê autores contemporâneos?
Por quem me toma? Só leio clássicos. Esses valteres hugos mães e tordos não me dizem nada. A literatura está morta. E está morta há muito tempo. Antes ainda havia tipos com classe. Há uns anos atrás. O pessoal acha que os antigos eram todos estúpidos mas isto era muito melhor. Há uns vinte anos atrás ainda se dizia umas coisas sobre livros. Havia textos interessantes nos jornais. Agora não há nada. É tudo lixo. Mas isto vem ainda mais de trás. A literatura acabou com a morte de Homero. Depois de Homero o dilúvio. Sabia que Homero era cego?
Há quem diga que Homero não existiu...
Tolos, todos uns tolos. Então quem escreveu a Ilíada? Fui eu? Foi a menina? Sejamos sérios. Se for para brincadeiras, vou-me já embora. Tenho mais que fazer. O Porto joga às sete e ainda tenho a patroa toda a escaldar, à espera que o gelo lhe esfregue o lombo (coça os testículos e pigarreia).
Que autores mais o influenciaram?
A minha maior influência sou eu. E este povo. O povão. Não esses pavões do governo, gatunos. Choro no meio desta malta. Esta cerveja inspira-me mais do que essa malta das políticas e das letras. Até me cheira a ranço só de pensar em certas aves raras. O primeiro-ministro, já reparou nele? Passou ao lado de uma grande carreira de actor, ao lado do La Féria. La Féria. Que nome de pardal. Agora que penso nisso. O mundo está perdido. Sabe o que lhe digo? O verdadeiro escritor não se pode perder em leituras. Esses mandarins premiados. É tudo treta e mediocridade. Já leu Beckett? Aquilo é uma mistela.
Não lê nada para além da sua própria obra?
Leio, leio. As notícias. Leio o jornal todo o santo dia. O Correio da Manhã. Nos dias mortos, entretenho-me a fazer palavras cruzadas ou a traduzir certas notícias para francês. É importante manter o cérebro activo. Esta trampa (olha para a garrafa de cerveja) não presta, não tem vida, é como a cultura portuguesa, não tem vida. O povo é que me impressiona. Então não é que houve um gajo que matou a família e anda a monte. Se um gajo desses me aparece à frente, nem sei, olhe, derreto-o ao murro.
Também escreve ao murro?
Bem, se é para brincar, o artista sai já de cena. Escrevo com as ferramentas mais actuais. Tiro notas de tudo. O meu método é muito simples. Escrevo em guardanapos, em bilhetes de autocarro. Já escrevi em notas de cinco euros. Depois passo tudo para o computador.
Revê muito?
Ai se não revejo. Revejo tanto que ainda não tenho qualquer obra publicada. Sou um escritor sem obra e orgulho-me disso. Quis ser famoso, sou. Nem preciso de publicar. Quais Gonçalos Tavares ou Lobos Antunes. Eu escrevo e apago. Ainda lá tenho uma mão cheia de manuscritos mas preciso de relê-los. Sei que acabarei por apagar o que escrevi. Odeio tudo. Não há solução. O melhor seria morrermos. Cair um meteorito. Acabar com a Terra. A vida não presta.
Mas aquele manuscrito que nunca foi lido por ninguém tem fama de ser promissor.
Ai, temos azar. Sobre os meus manuscritos ninguém fala. Não os dou a ler a ninguém porque ninguém os saberia ler. Mentira (esboça um sorriso). Esse tão badalado manuscrito foi lido por uma puta ucraniana. Não é que a tipa não me disse que não sabia ler português? É como lhe digo, já não se pode confiar. Estamos ali e não estamos. Uma miséria.
Diz-se que a Penguin anda atrás de si. É verdade?
(Encolhe os ombros) Querem artista, paguem. Os carros bebem gasolina, eu bebo cerveja. Tudo isto é pago. Para si faço de borla. A menina é bonita. Quer performance? Atente (o escritor aplica uma bordoada na nuca de um cliente sentado não muito longe, recebe um soco e cai no chão. É reanimado com um copo de whisky que, segundo se diz, é a única coisa capaz de tirá-lo do mundo dos mortos). Gostou? Sou capaz disto e muito mais. Depois venham-me falar do Hemingway.
A sua fama de arruaceiro vem de longe. Lembra-se do momento em que enveredou por esta via da devassa?
Foi em 1996, com o chapéu do Poborsky ao Baía. Bebi tanto, tanto que, não sei, parece que descobri Deus. O Deus da bebida e da cigarrada. A minha vida mudou por completo. Comecei a frequentar bordéis. Ia para a cama com tudo o que mexia. Pratiquei cunnilingus com uma senhora de setenta anos. Vê a profundidade disto? Uma senhora de setenta anos sem a dentadura metida. Isto é como Herman Hesse encontrar Buda. Acontece uma vez em mil anos. E a mim aconteceu-me muitas vezes. Ou seja, fartei-me de ver budas desdentados.
Onde escreve?
Em qualquer sítio. Prefiro sítios cheios de gente, como esta tasquinha. Também escrevo no sossego do quarto. Escrevo no cinema. Escrevo nas pernas das mulheres. Nos seios das meninas do striptease. No papel higiénico. Nos meus braços. Escrevo onde for preciso. Escritor que é escritor não se deixa embaraçar.
Porque escreve?
Escrevo porque é tudo uma merda. A escrita é a minha religião. Os burgueses têm o trabalho, eles são como gado e precisam do trabalho senão desorientam-se. Eu tenho uma vocação superior. Eu tenho uma religião, que é a escrita. É na escrita que me elevo e é na escrita que me realizo. Mas você é uma jornalista, nem sei para que é que estou a falar disto consigo. Você não percebe nada de escrever, do que é o processo criativo. Você é uma burguesa. As dores do parto. O que eu sofro. Você não faz ideia do que eu sofro. (O autor esconde a cara entre as mãos. Emite um som que parece ser o de um soluço, ou talvez o de uma assoadela vigorosa.) Ai que eu sofro tanto! (O artista acaba a cerveja que tem no copo e diz para o empregado:) Traz aí mais uma que estou a sofrer!
Falou em trabalho. Exerce alguma profissão?
A vida não se ganha, vive-se. Já lhe disse que sou um artista e que vivo para escrever. Antes tinha a ilusão de que um tipo podia ter o seu trabalhinho e depois vir para casa escrever – também já tive as minhas ilusões. Mas depois percebi que isto é uma profissão de tempo inteiro. Mais do que uma profissão, é um sacerdócio. Não tenho tempo para mais nada, tenho de ser escritor sempre, a cada momento do dia. Até a dar uma à patroa sou escritor, ouviu? Tou ali em cima dela a fazer um poema. É assim que me vem muita da minha poesia. E o chuveiro, então, é o melhor que há para a poesia. Às vezes tenho de interromper o duche porque me vem um poema, e quando volto vem logo outro de maneira a que tenho de sair logo outra vez. A minha mãe vê-me a sair esbaforido da casa de banho a pingar e pergunta-me se a botija já acabou. Ela não compreende. Já tentei pôr um caderno ao lado da banheira, mas aquilo molha-se tudo... Ninguém me compreende. A minha mãe quer que eu arranje um trabalho. Mas eu não tenho tempo para ter um trabalho. Preciso de tempo para escrever, e para escrever preciso de ler, e para ler é preciso tempo...
A leitura é então importante para si? Há pouco dizia-nos que...
A leitura é essencial. Essencial, ouviu!? Só esses escritores de hoje em dia é que não lêem. Antes os escritores eram homens de letras, agora são macacos tatuados que vão à televisão. Eu leio tanto. Às vezes sinto que tenho a tola a rebentar com tanta informação. O meu cérebro parece uma locomotiva a devorar carvão. Pimba Homero, pimba Dante, pimba Saramago. A minha mãe bem me diz para eu não ler tanto, mas eu sou assim, aos três e aos quatro de cada vez. Depois tenho de ir à discoteca, claro, não porque goste da discoteca, mas porque é preciso deitar o fumo cá para fora de alguma maneira, senão a locomotiva rebenta. Mas eu odeio discotecas, apesar de achar que as discotecas têm uma vocação social, a saber, manter-nos a salvo de adolescentes com cio, eles vão todos para a discoteca e podemos andar na rua seguros. Sim, as discotecas são essenciais… Mas onde é que eu ia?
Estava a falar de leitura...
Sim, sim, eu leio muito. Mas na maioria das vezes dou comigo a pensar “Isto afinal é uma merda. Será que estou maluco e isto é muito bom ou que é toda a gente estúpida e eu estou certo?” Leio uma página ali para o Gervásio (O artista aponta para o empregado que nos sussurra que, para que fique registado, se chama António), ainda noutro dia fiz isso. Li-lhe um poema de Herberto Helder e disse-lhe “Houve lá, não achas que isto é uma merda?” Ele olhou para mim com este olhar de palerma. Mas ele não é palerma nenhum. Eu li o poema outra vez. “Então, diz lá o que achas?” Ele tentou safar-se a dizer que tinha de ir tirar uma cerveja, mas eu não o deixei ir. “Queres apanhar nos cornos? O que achas?” “Desculpe mas não percebi nada”. Aí está! O povo é que é detentor da verdade, já Tolstoi dizia, e Tolstoi não era parvo nenhum. Aquilo não se percebe nada! O povo! A minha esperança está no povo. No olhar do Gervásio (“É António”, sussurra-nos o Sr. Gervásio) eu vi que afinal tinha razão. Os académicos enlouqueceram nas suas bibliotecas, porque se afastaram do povo e deixaram de ser gente a sério. As aranhas fizeram a cama nas suas cabeças. É triste chegar a esta conclusão, mas, no fim de contas, toda a gente é estúpida. Andam todos a ser enganados. Ali o Gervásio também é estúpido. Mas esta gente simples está ligada a uma inteligência colectiva que não se engana. Como as formigas, está a ver? Ou as abelhas, ou as manadas de búfalos a correr, a correr na pradaria. A inteligência da espécie de que Schopenhauer fala. A menina leu Schopenhauer?
Bem, li o…
Não leu nada! A juventude de hoje não lê nada, são todos estúpidos.
Planeia publicar um livro em breve?
Oiça, isso não depende de mim. Eu sou o artista, eu escrevo. Quem quiser publicar que venha bater à minha porta. Mas publicar não é coisa que me interesse. Publicar é estúpido. Mas aí a culpa é dos editores. Antes os editores eram gajos com classe, gajos que liam e escreviam. Agora é só badamecos que não sabem nada. Capas medonhas. Livros para analfabetos. Putanhices coloridas. Nem gramática sabem. Só querem explorar o artista. Mas a mim é que ninguém explora.
Já pensou em publicar os seus livros próprios livros? Hoje em dia é bastante fácil com as novas tecnologias. Podia, por exemplo, começar um blogue…
Não me fale em blogues! Quando oiço falar em blogues dá-me logo a volta à tripa! Isso é tudo uma merda, isso tudo o que se faz, isso é tudo para encher a vista. Conheço uns tipos que escrevem e que têm um blogue. Mas aquilo é medonho. Só choraminguices confessionais, poemas que nunca mais acabam. E depois aquilo é feio. Não se consegue ler bem. Acha que um escritor a sério escreve num blogue? Está a ver o Saramago a escrever num blogue? Isso da internet é uma moda que passa. Sabe onde está o futuro? O futuro está na rádio. Na rádio, sabia? A menina é muito bonitinha mas não percebe como isto tudo funciona. Estou a ver que tenho de lhe dar umas lições. Tenho o carro estacionado nas traseiras, não quer ir um bocadinho comigo para o banco de trás?
Não acha que está a ser simplista? Esta entrevista é para um blog e…
O quê?! Ai isto não é para um jornal a sério? Está a gozar com a minha cara? Então você não é do Público?
A entrevista será publicada num blogue chamado Enfermaria 6...
Nem do Expresso?
Não. A Enfermaria 6 é...
Nem do Jornal de Negócios?
Não. A…
Nem mesmo do Jornal da Região?
Não...
Foda-se, está-me a enganar, a menina está-me a enganar! Eu logo vi que era uma medíocre. Você bem que me tentou seduzir com esse decote mas eu vi logo que era uma medíocre. A tentar aproveitar-se de mim! Eu aqui a perder o meu tempo consigo! Tudo decadência e podridão! (A gritar:) O artista não é respeitado. O artista é atraído para fora da sua caverna, onde é feliz, com mentiras, só para ser humilhado em público! (O autor levanta-se) A menina veio aqui só para gozar comigo!
Nisto vimo-nos na necessidade de dar por concluída a entrevista. Exaltado, o entrevistado bateu violentamente com o punho na mesa, e de seguida agarrou-se à mão e, entre urros, lá o ouvimos gemer «Gervásio, traz o gelo! Já fodi outra vez a mão!» O Sr. Gervásio, perdão, António, abordou-nos junto à porta, quando nos tentávamos pisgar dali o mais rapidamente possível, e confessou-nos que o episódio não era invulgar, que era, aliás, «certinho sempre que o Porto perde». «Mas não se preocupe», acrescentou, «daqui a uns dias ele já está bom. Sabe, ele até que não é mau rapaz, mas tem estas manias…»