Espadas de aço fino
/Nunca a horas. Sem dinheiro para apanhar um táxi. Os autocarros atrasados. Mais um sermão do psiquiatra. O senhor é uma criança, cumprir compromissos não é consigo, o que é feito dos duzentos euros de dízima? Um calhau no meio do caminho e os olhos pregados ao relógio parado e a criatura afocinhando no alcatrão, entrando na clínica a escorrer sangue do nariz. Pálida de espanto, a recepcionista abriu a boca mas não falou. Um homem ensanguentado perguntava-lhe pelo doutor, se já tinha chegado, se faltava muito para a consulta, se a consulta tinha sido adiada. A boca da senhora aberta de admiração. Um homem coberto de sangue. A criatura enfiou a língua para dentro da boca aberta da recepcionista e depois de ser mordida sentou-se no chão e perguntou pelo doutor. Que estava desesperado, que os medicamentos não faziam efeito, que as obsessões tinham regressado. Que não saberia exprimir-se de maneira conveniente. Que só o doutor o ouvia. Com os lábios manchados de sangue, a recepcionista abriu a porta do consultório e afirmou entre, que Zeus aguarda-o vai para meia-hora. Zeus esperava impacientemente, chupando um cigarro maior do que uma caneta e tremendo da perna, hipereufemismo, provocando terremotos mediante patadas na mesa. A criatura ajoelhou-se, colou a testa aos sapatos do doutor e suplicou ajude-me, tentei matar-me ontem à noite, a mulher saiu de casa e levou os miúdos e as vozes dentro de mim. O doutor não quis ajudar logo, disse eu sou Zeus e não nasci para esperar, nem para mendigar, lamba-me os sapatos e talvez a partir daí possamos dar início a um diálogo, digamos, profícuo. A criatura lambeu e mordeu o cachucho do doutor quando este lhe esticou o anelar. O que lhe aconteceu à fronha?, perguntou o doutor. Caí, não tive tempo de me limpar, respondeu a criatura. O doutor pediu-lhe, não pediu, Zeus não pede, ordenou que explorasse melhor esse assunto da mulher e dos filhos. A criatura repetiu que a mulher tinha desaparecido com os miúdos. Qual mulher? A minha. Zeus puxava a criatura para os factos: você não tem mulher, a sua falecida esposa enfiou-se com os miúdos numa fogueira há uma vida, não é assim? É, é, doutor, é assim, mas sinto como se fosse agora. Uma dor profunda que escavaca como uma picareta. O doutor prosseguiu: e se lhe disser que nunca teve mulher? A criatura acreditava, Zeus não se enganava. Altere-me a medicação doutor. A criatura desesperançada. Receite-me mais comprimidos, injecte-me mais daquele líquido. Ontem tentei matar-me com uma faca. A criatura acordara de madrugada, dirigira-se à cozinha e espetara uma faca no ombro. Esperava morrer com uma faca no ombro? A criatura pediu licença para se explicar melhor: não me tentei matar, doutor, tentei substituir uma dor por outra, substituir a saudade ou amor ou paixão, ou o que raio lhe chamam as gentes normais, por uma dor física, substituir uma dor por outra. Zeus de cigarro na boca. Amor?, perguntou.