Os centauros
/Viol e Forey são dois reformados que passam a tarde a conversar com uma réplica de um cérebro humano nas mãos. Vão-no dissecando, à medida que conversam sobre cavalos. Têm ambos uma inusitada paixão por estes animais. Nunca montaram, nem pretendem montar (agora já é tarde para todos os triunfos e coragens), nunca tiveram qualquer relação de óbvia proximidade com este ou até com outros animais, mas há algo neles que os leva a pensar insistentemente na figura equina e a discutir, através de uma imensa rede de coincidências declaradas, a razão daquela consanguinidade mental.
O processo repete-se diariamente (ora na casa de Viol, ora na casa de Forey) e a conversa, ainda que parta sempre de ângulos tão digressivos como experimentais, não ilude o destino, nem alivia a incessante constatação do resultado: por volta das cinco da tarde, sempre com a réplica do cérebro na mão, os dois amigos atingem o hipocampo. O hipocampo é o quartel-general da memória, essa delicada zona cerebral que lembra, pelos seus contornos curvos e vagamente sensuais, um cavalo-marinho, um hippocampus. A partir daqui a coisa complica-se. Os dois amigos sofrem subitamente um surto de estranheza galopante, a conversa seca e instala-se um tédio confuso semelhante à bruma da Irlanda. Despedem-se então cordialmente e regressam à sua vida normal.