Dois tipos de poetas

Na gare de Lyon ouço música pop 
Não sei o que faço aqui com os 
guichets preenchidos de perguntas 
                                  Em que lugar? 
              Qual o cais para Grenoble? 
E espero, como tantas vezes. 
Jornais, revistas, sanduíches 
Humildes balcões húmidos repletos de publicidade desinteressante 
Viagens circulares sem destino, de quem espera 
sem correr, sem vontade. 
A mulher de verde com óculos escuros 
O homem de fato a tentar esconder o coçado do colarinho 
O homem de fato a tentar disfarçar as sapatilhas 
O de sapatilhas a tentar arrebatar o porta-moedas da mulher de verde 
Os gritos da velha que não sabe do marido que está mais interessado na miúda loura 
Coca-cola que aqui se diz côcá 
Batatas fritas, frites, frites, 
E o cheiro imundo a óleo 
E espero com os 
miúdos que correm para lá do alcance dos olhos. 
Os papéis voam-me 
São os aviões na gare de Lyon 

À minha frente, enquanto aguardo o autocarro, 
lê triste um livro 
- verso foleiro, mas o rosto era esse. 
Não percebo o que lê. 
Triste porque parece 
não que tenha a certeza. 
Está na idade de ler livros tristes. 
Com as mãos a vibrar lentamente sobre páginas antigas 
As palavras sussurrando-lhe ao ouvido 
Cenas imaginadas, mais ricas do que o próprio texto
Mais húmidas do que a chuva 
Ou o balcão imundo 
Como se fazer-lhe mal fosse um primário desejo. 

Apetece sair e dar uma boa caminhada entre os autocarros 
Respirar o ar puro, ou o fumo do escape, 
Ver luz 
Sem a voz repetida do anúncio dos cais de partida. 
Apetece mergulhar numa queda de água 
Bater a espuma nos ombros 
E sorrir um verde imaturo. 
Mas sou puxado de novo para a gare. 
Para a espera em viagens circulares sem destino, com as folhas a fugirem-me, 
sem lugar onde sentar, 
apenas aquele com ela de frente 
segurando o livro como cálice sagrado 
sem fingimento 
só lágrimas e vibração religiosa. 

Se falasse talvez eu desistisse de a admirar 
talvez tudo fosse muito mais normal e a cheirar a óleo como tudo o resto. 
Há dois tipos de poetas, os que trabalham com imagens 
e os que produzem as imagens. Os últimos morrem por dentro 
e nós morremos pelos olhos. 
A única forma de estar verdadeiramente a salvo 
é ser cego 
Uma cegueira que corre em sentido anti-horário 
anti-vida que nos entra pelos olhos. 
Ou então fechá-los propositadamente sempre que doam. 
Quando a imagem fere 
e essa dor se mantém intimamente, como um silvo interminável. 
Se um dia penso numa cor, verde ou laranja, 
não preciso encontrá-la para sobre ela construir um poema. 
Mas se a cor, o verde ou o laranja, vem ter comigo,
então posso cegar-me de dor. 

São quase três horas. 
Olho-a uma última vez para deixar a ferida por cicatrizar 
embutida nos olhos 
por dentro 
- pelo menos por uns minutos, enquanto me durar a vontade.
Não a deixo falar, não a quero ouvir, 
nem mexer. Deixá-la ali quieta é melhor. 
A vida é água fria 
com menos sabor do que a imaginação 
- pelo menos a minha
de onde consigo domar o destino 
e despentear a realidade 
até ela gritar de prazer. 
Deixo-a girar ritmadamente as páginas 
sonhando-a como quero 
- sem que fale, nem me olhe.
Melhor assim, 
sublimada, despenteada, irreal, 
quente. 

Na gare de Lyon não há aviões. 
Há livros e lágrimas escondidas.