O "investidor" ou o fim do capitalismo financeiro

Li há poucos dias no jornal Público que o “investidor” Joe Berardo reduziu a sua participação numa determinada empresa para 0,53%. Esta frase aparentemente simples, inscrita numa figuração humana, portuguesa da madeira, estranha (opaca, redutora, com uma fonética desviante – espécie de linguista rebelde – e, mau para ele e muito mau para os portugueses, endividada em centenas de milhões de euros), desfez algumas das minhas dúvidas sobre a morte do capitalismo financeiro mais purista.

O século XXI trouxe dados económico-financeiros bastante novos, que de uma ou outra forma giram, na minha perspectiva pouco erudita, em torno de duas variáveis: a) os fluxos do investimento financeiro mundial abandonaram parcialmente a órbita ocidental, com muitos países emergentes a conseguirem captar pela primeira vez o dinheiro dos fundos institucionais e especulativos; b) a Europa, velha e cansada Europa, e o Japão mostram-se incapazes de compensar os desequilíbrios demográficos, esmagando o Estado Social com o peso dos “improdutivos” (na lógica que criaram de inclusão/exclusão), mesmo aumentando impostos e baixando os abonos sociais. Este novo statu quo vai alterar muita coisa, alterou já muita coisa. Nem todas para pior, creio que se reforça lentamente uma linha ética desenvolvendo novos cuidados pela alteridade, o que está fora de nós mas não deve ser aniquilado, do outro humano ao meio ambiente. Por isso se expandem continuamente as éticas animais e ambientais, mas também neo-humanismos estruturados em torno da compaixão (em geral não especista).

Este Ethical Turn deve-se, como disse, a mudanças estruturais nas sociedades contemporâneas. Mas também a uma nova lucidez que ilumina o canto obscuro dos oportunistas, mostrando como muitos dos “heróis capitalistas” são afinal uma versão quase caricatural dos personagens vencidos, em tragédia de alguidar, das telenovelas. E estes personagens, incarnando um neo-picarismo, constituem a outra grande condição da falência do capitalismo mais amoral (desregulado e discriminatório). Já ninguém, nem os próprios “mercados”, se deslumbram (fizeram-no muitas vezes até à medusificação) com indivíduos que atiram ao ar milhões de euros, pagando para ver de onde sopra o vento. Sem verdadeiro conhecimento de causa, sem prudência, sem qualquer cuidado pelas repercussões sobre os humanos mais frágeis, sem preocupações ambientais... Como numa aposta de póquer onde se mistura bluff e sorte, nada refreava o seu entusiasmo egocêntrico e vontade de domínio (mesmo, como se revelou ultimamente, dentro da própria família).

A mais recente Aufklärung, misturando racionalidade e moral, como em Kant, traz também para o primeiro plano da acção uma dimensão política. No sentido em que as democracias avançadas, desejando manter o modelo capitalista assente numa mistura de iniciativa privada e intervenção do estado no desenrolar do processo económico, já não pactuam (tanto) com “investidores” parasitas (metáfora estritamente biológica), fanfarrões da finança. Fazendo circular dinheiro quase a partir do nada (a maioria do que está em circulação é fabricado pelos bancos com algoritmos que criam e gerem dívidas, ele representa muito pouco a economia real), esses indivíduos, sozinhos ou em bando, procuram o máximo de lucro no mais curto espaço de tempo, em modo de rolo compressor. Este modelo operativo omite qualquer racionalidade ou ética que ultrapasse o simplismo e egoísmo do ganho puramente quantitativo. Por exemplo, nenhum dos personagens se preocupará com a devastação económica ou ambiental que as suas apostas financeiras possam provocar (temos visto isso com uma clareza cristalina em alguns bancos portugueses). Por isso, creio que muitos subscrevem este postulado: “ou controlamos os ‘investidores’ ou  falhamos o desenvolvimento da democracia” (que significa a falência da própria democracia, já que ele só sobrevive evoluindo).

É neste contexto que perante a notícia do Público me apetece escrever uma carta de esclarecimento (a um bom jornal generalista), dizendo-lhes que o caro Joe (talvez o possa tratar assim, agora que vou pagar parte das suas dívidas) não é um investidor, antes um especulador oportunista incapaz de pagar o que deve. Joe não investiu ou investe, Joe apostou e ganhou enquanto o mercado financeiro andava estupidamente frenético, aquecido pela fogueira da ganância e da ignorância, e acredita que Branca de Neve e os Sete Anões gerem um Offshore ou a Montanha Mágica é um livro para crianças. Ele apostou e perdeu quando se deu o Economics turn, acompanhado do Ethical turn a que me refiro acima, ele é uma figura arcaica, anacrónica, sem dinheiro ou poder visível. Mantém um lastro de VIP tricotado pelas revistas cor-de-rosa mais pimbas; um pequeno espaço televisivo quando esses média unilaterais e já sem fôlego procuram, desconhecendo-o, oráculos ridículos; uma singela coluna num jornal de referência porque ainda há jornalistas que confundem calhaus com cérebros. A par da sua queda, sem a nobreza das tragédias, adequada a um melodrama de cordel, a desgraça cairá sobre um país que durante demasiado tempo adorou estes vendedores de banha da cobra, de ilusões primárias, de pragmatismos estéreis e amorais.