Terra, 2335

A ausência de prova não é prova de ausência. Deus está aqui (e não em toda a parte), reclinado no seu intrínseco divã, entre os costumes perfumados da fama e a excelsa respiração da manhã. Mas o seu rosto, oriundo da especulação secular, está abalado. Alguns movimentos involuntários, tremuras e contorções, tiques e trejeitos visivelmente inoperantes que interferem com a placidez do estereótipo e reflectem a falência da representação, desafiam agora os seus consabidos poderes ancestrais. Ao seu lado, o seu cuidador, um androide de grandes olhos ovais e extrema dedicação, cumpre o seu ritual. 

Nisto, à volta da cabeça de deus, forma-se uma grande nuvem de moscas que coroa a sua paralisia cerebral. O seu voo é denso, circular e constante. A infinita rigidez de deus impede-o de as enxotar.

Estamos em pleno planeta Terra. A cena decorre num imenso jardim, onde o verde se conjuga maravilhosamente com o castanho e o branco das margaridas ensaia uma coreografia com o amarelo das acácias, e a luz do sol cai a pique sobre os baloiços, os aquedutos e as estátuas. Ao longe, do interior de uma oficina de protótipos angelicais, ouvem-se os risos de androides embriagados. O último humano foi avistado há cerca de 300 anos. Reina a mais indecorosa paz.