Um figurante de poeta
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Quem não tem vergonha, todo o mundo é seu
- Provérbio
Em proveta idade garatujou o mancebo os primeiros versinhos. A mãe gabou-lhe o talento, a fama medrou e as deslumbradas meninas do subúrbio desataram a suspirar à passagem de tão esbelta e talentosa figura. Nos primeiros anos de liceu, apercebeu-se de que o título de engraçadinho da turma não advinha de uma mera capacidade de fazer mofa dos amigos. A cada nova chalaça se espantava por ter nascido dotado de um incomum sentido crítico que fundia comédia e filosofia. Entrou no tempo das borbulhas ciente de que dos seus talentos nada de frutuoso resultaria em termos intelectuais, e desde logo se afastou de uma luta que não sentia sua, a luta pelo mérito, lexema que abominava ou, para recorrer ao seu jargão, com que não se identificava. Ao mesmo tempo que se furtava a uma competição inglória, que só sorria aos predestinados ou aos que torravam o bestunto com estudos forçados, seguiu caminhos por desbravar. Foi dos primeiros, e quiçá dos únicos, alunos a pintarem o cabelo de louro claro. Raros seguidores seus enrolavam o cigarro com semelhante magnificência. Perto do final do 9º ano de escolaridade, bateu-se como um D. Quixote pela mais nobre das causas: espancar o maligno e curto de vistas professor que ameaçava com um chumbo a sua progressão na carreira estudantil. Momento áureo deste herói ocorreu volvidos escassos dias do seu décimo sexto aniversário, ao arrastar para o covil (o quarto dos pais, entenda-se) a Marília do 11º A, doutorada nas artes carnais, que lhe rapinou a virgindade com um profissionalismo de assalariada. A unânime admiração da estudantada por este cavalheiro adensou-se na enevoada manhã em que irrompeu na secundária munido de valioso despojo de guerra: as cuecas da Marília.
De vitória em vitória encheu o guerreiro o bucho. Ainda não acabara de ler o primeiro livro e já assinava como poeta. Custou-lhe menos publicar a primeira recolha de poemas do que escrever, actividade a que, por causa das garinas que se lhe prendiam às barbichas, se dedicava em invernos em que o sol não se mostrava. Amado por seus pares, esgotou sem esforço a primeira edição da dita recolha. Crítico consagrado, imune à inteligência, dirigiu-lhe panegírico no jornal em que semanalmente os seus urros eram dados à estampa. “Diamante por lapidar”, “pedrada no charco”, “escrita magnética”, estas e outras expressões, que escriba sensato se deve opor a registar, engrandeceram a dignidade de um ser humano cujo principal feito, ao olhar de quem está de fora, consistia em ser autor de versos que, desde os seis anos de idade, o tempo deixara iguais. Ao avistar antigos colegas de turma, o jovem, até aos cinquenta anos jovem, esboçava sorrisinho trocista. Que importava que fossem médicos, advogados, que ganhassem ordenados avultados, se era um poeta semi-famoso que, volta e meia, aparecia no suplemento cultural? Até o convidavam para declamar poesia da sua cepa nos mais cavernosos bares da capital. Alcançou a consagração antes dos trinta e cinco anos, não com prémios literários distribuídos ao acaso por juntas de freguesia, nem com a publicação de qualquer obra-prima que eclipsasse a famélica maralha literária que se alimentava de tremoços e imperiais. O estrelato aterrou-lhe em cima ao conquistar um papel como figurante de poeta num filme sobre escritores marginais, rodado por realizador estrangeiro no mais típico bairro lisboeta.