A morte do senhor André

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Não entrava na livraria do senhor André desde o fim da licenciatura, quase há uma vida. Quando o visitei pela última vez, senti que não o voltaria a ver. Poderia ter voltado à Lácio (no Campo Grande) sempre que desejasse, ninguém me impediu, fui eu, foi a minha cabeça que me proibiu de regressar a sítios que me prendessem às lembranças das aulas, dos professores e da penúria.

 Os livros que encontrava nas estantes da Lácio não eram difíceis de achar noutro lugar, e os preços não eram convidativos. A impressão que aquele espaço me dava era a de que se tratava de uma biblioteca particular pertencente a um homem que não tinha prazer em vender os seus livros. Frequentava a livraria para conversar com o senhor André. A dada altura, comprei-lhe um livro por quarenta absurdos euros. Vivia com muito pouco e o dinheiro fazia-me falta. Por sugestão do homem, paguei o livro a prestações. Dei tanto dinheiro por um livro que não me interessava só para ter um pretexto para ver mais vezes o senhor André. 

 O ar desconfiado e carrancudo do livreiro assustava muita gente. O senhor André não apreciava imberbes ignorantes e gente que não  manuseasse livros com a delicadeza necessária. “O livro retirado da estante deve regressar ao mesmo lugar”, não raro o ouvi proferir frase parecida. A sua caturrice só afugentava os temerosos. Aqueles que amavam os livros ficavam, resistiam, colavam-se ao homem para escutar as suas palestras. O senhor André perorava sobre os mais diversos assuntos, sempre de forma castiça e humorada. A sua vinda do Brasil num navio carregado de caixotes de livros, o seu labor na Bertrand na Avenida de Roma, os comunistas intransigentes, os existencialistas, os bordéis e as mulheres feias que deveriam andar encapuçadas. Nunca lhe faltava assunto. Mas interessavam-me menos as histórias do que a sua companhia.

 Daqui a uns anos ninguém recordará o senhor André. Aquela magia desapareceu com ele. A sua morte encheu-me de tristeza. A morte dele representa a morte de uma parte idealista do meu passado, uma parte que tanto renegava. A nossa morte começa com a morte dos outros. O mundo não perdoa. Quem me traz de volta aquele dia em que o velhote me apelidou de escritor? As memórias extinguem-se, tornamo-nos pedras duras. Este não é um texto sobre a amizade, mas sobre o fim de tudo aquilo de que gostamos, da incapacidade de conservarmos as lembranças mais doces. Não importa de quem é a culpa. Um dia também eu esquecerei tudo e também por todos serei esquecido.