O génio e o superficial

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Portugal tem um escritor genial vivo, talvez o seu melhor prosador desde sabe-se lá quando, um escritor daqueles mesmo bons, comparável a, vá lá, Dostoiévski, Faulkner e companhia. Sabemos que nem tudo o que esse escritor escreveu é brilhante. Escrever um livro genial já é tarefa gigante para um animal. O escritor português genial não é obrigado a parar de escrever ou a calar-se só porque é génio ou porque as hienas farejam o palco. O génio faz o que lhe apetece. Até morrer. Ser humano e ser livre implica fazer o que se quer. Que lhe interessam as hienas, aqueles que sentem o cheiro, que possuem nome, carreira mas não obra, que vivem dos amigos, a publicar os amigos, a entrevistar os amigos, a blá blá com os amigos? Que interessam os recensionistas/recensioneiros/recensionadores? Que interesse tem a palha para quem está ao nível dos melhores mortos? “É repetitivo”, argumentam os que mal o leram, que mal leram o que quer que seja. “É enfadonho”, ladram outros, carcomidos pelo tédio mas vaidosos o suficiente para também desejarem um lugar ao sol. Vergamo-nos quando o génio passa ou assim nos deveríamos comportar se fôssemos educados para valorizar aquilo que temos de melhor. Não é assim, não fomos educados para respeitar e admirar os nossos melhores. Ortega y Gasset explicou muito bem a tragédia que representa a ascensão das massas ao poder. Desaparecem as minorias, as elites, passamos a ser governados pelo povo. Coitados de nós, governados por gente igual a nós. Pela senhora da mercearia. Pelo sapateiro. Pelo contabilista. Miseráveis. O sapateiro não aprecia génios. Coitado, o sapateiro faz os melhores sapatos, mas não obras de arte, não este sapateiro de Gasset, este só produz sapatos banais, sapatos à sua imagem. É por aqui que passa o problema. Queremos baixar a bitola. Comparamos Bernardos Santarenos a Shakespeares não apenas por ignorância, também por má-fé, por inveja, por não sermos capazes de nos transcendermos. O Nobel para outro português? Sim, se não for para o génio, se cair na algibeira de um dos nossos, de um normal. “O génio não vende”, sussurram alguns iluminados, vendeu mil e seiscentos exemplares. Que interessa que a crise tenha destruído o mundo? Há trinta anos vendia trinta mil. Agora vende mil. O génio não vende e isso é muito importante para quem nunca vendeu, para quem vende com sorte cem exemplares do seu "trabalho artístico", se a apresentação do livro contar com vinho e leituras animadas num ambiente em que se possa fumar. Questões minúsculas só podem ser relevantes para quem deseja ser relevante. Falar acerca de anjos caídos, muito bem, o debate interessa. Podemos começar a falar daquilo que os génios venderam ao longo dos séculos. Dos génios que não foram publicados em vida. E depois chamamos o director de vendas da FNAC para dar a sua opinião.