Sobre não saber
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Uma amiga que esteve uns meses a viver em Inglaterra mudou-se para Itália. Às vezes conversamos e entretemo-nos a enumerar as diferenças entre os dois países. Há o horário de trabalho, em Itália o dia começa mais tarde e trabalha-se até mais tarde. Em Inglaterra os meses de Inverno são os mais difíceis de suportar. Sobretudo para quem vem do sul e no primeiro ano. Não é tanto o frio quanto a falta de luz. No pico do Inverno os dias duram das oito da manhã às três ou quatro da tarde e as pessoas vivem dentro de casa de uma maneira que não se vive no Sul, nem no Inverno. Virginia Woolf (“On Not Knowing Greek”) explica a partir desta diferença porque é que fez muito mais sentido a tragédia ter nascido num lugar em que as pessoas têm de se aturar umas às outras com temperaturas acima dos 28º. A Primavera e o Outono são as estações em que o ano Inglês se parece mais com o ano português. Amanhece por volta das seis, sete, anoitece por volta das sete da tarde. No pico do Verão há luz entre as quatro da manhã e as dez da noite e é difícil não sentir a falta desses dias no Inverno.
A minha amiga transportou um violoncelo, três malas e vários caixotes de livros de Cambridge para Orvieto, depois de trocar uma posição de professora temporária por uma vaga na orquestra que trabalha para a Opera del Duomo di Orvieto e por um quartinho numa das ruas paralelas à catedral. Do horário inevitavelmente descemos ao temperamento das pessoas, ao modo como vivem. A experiência dela não foi boa e ambas concordamos que ela não passou tempo suficiente em Inglaterra para fazer a transição do tempo do choque cultural para a adaptação, mas a primeira coisa de que ela me fala é de nunca ter deixado de sentir falta de falar a própria língua: é como ter de usar uma máscara durante todo o tempo. Talvez não seja bem isso, mas antes um caminho muito difícil de percorrer, porque nunca se tem uma imagem muito adequada da parte da nossa identidade que é produto do lugar onde se nasce, se cresce e se é educado, e do quanto isso é importante, até sairmos. Essa imagem só chega depois. Na verdade, há uma parte considerável dessa identidade que só passa a existir por uma espécie de choque, porque a distância geográfica inevitavelmente impõe um corte, que é radical, é nesse corte que uma ideia de nós próprios como produto de uma dada cultura se torna mais exacerbada do que seria de outro modo, mesmo para aqueles que depois fazem a passagem: a passagem na verdade talvez seja um ponto entre, não bem a identidade do país que nos acolhe, mas uma ideia de Europa.
Os galegos têm o hábito de se juntar com os irlandeses num dos pubs da cidade, a cada primeira quarta-feira do mês para tocarem e cantarem juntos, em parte porque esses irlandeses pensam neles próprios como celtas e acreditam que têm canções em comum com os galegos. Os portugueses juntam-se aos galegos porque a língua é parecida, ou porque, em alguns casos, mais simplesmente pensam neles como os portugueses de Espanha. Um galego, bêbado, às duas da manhã, num pub da Grã-Bretanha, não terá problemas em explicar esta ligação cultural evocando a noção de que a prova inegável desse facto não são tanto as línguas, que são muito próximas, mas pelo facto de que são os dois povos da península ibérica que fazem sopa com couve galega.
Há uma descrição num poema de Luís Cernuda em que ele fala de uma coisa que talvez seja importante para perceber isto. O poema é sobre Cortez e os Pizarros e o narrador é um dos indivíduos que partem na armada de Cortez. O narrador conta como à medida que a embarcação se vai afastando da costa de Espanha ele vê a terra a afastar-se e fala do como sente ceder o nó que o liga à terra.
Os meus primeiros meses em Inglaterra envolvem uma história com Orvieto. Tendo ganho uma bolsa para ir estudar umas semanas para Varsóvia, num curso ministrado por uma horda de pessoas oriundas de países onde nos meses de Verão se cultiva o hábito de enfiar as peúgas e depois calçar as sandálias e vestir uma camisola interior sem mangas e aos furinhos por baixo das camisas, e que repetem nestes cursos coisas que escreveram nos longos invernos de Chicago ou Cambridge (Massachussetts), sucede que o período dessa bolsa bateu exactamente com o período de depressão que, para mim, se seguiu à cedência do nó que prende as criaturas que se afastam à terra-mãe (repare-se como as autoridades nos fazem sempre carregar o passaporte, essa réstia da corda, cordão umbilical). Por muito que eu tente outras descrições, eu estava tão entusiasmada a frequentar aquele curso como uma girafa numa piscina de areia movediça. Dividindo o quarto com uma académica que encheu as minhas noites com a descrição do enredo épico de reuniões de supervisão, influências e extenuante peer-reviewing que culminaria com a publicação do seu artigo (“The Semiotics of Hair in Second Temple Judaism”) numa conhecida revista de uma universidade britânica de topo, assim, cada uma de nós a transpirar em bica, de janela aberta e ventoinha ligada, como se fosse um Verão português, e com os ecos ocasionais das vozes das poucas almas que povoavam ainda a residência da universidade, quatro andares abaixo de nós na quadra de basquetebol, eu pude sentir-me completamente sozinha e no escuro.
Quando finalmente o silêncio foi caindo, eu tive a oportunidade de reapreciar os versos iniciais daquela canção de Caetano, “Terra”, quando ele diz que gente é outra alegria, diferente das estrelas. Isto é, apreciar a devida proporção de aleatoriedade com que habitamos o universo, essa ideia metade mágica, metade perigosa, de que qualquer coisa pode acontecer, mas sem a qual não dá para viver. Muito depois de a minha colega se ter calado e ser possível distinguir um fio de baba a correr-lhe da boca para a almofada, com algum cabelo pelo meio mas sem semiótica, eu cheguei-me à janela aberta, era agora noite escura e uma grande traça repousava num dos vidros, e podia ver-se as estrelas do leste, e eu pousei o meu queixo no mármore do parapeito à espera do tipo de frio que habita as pedras dos matadouros, e fiquei a ouvir o barulho do jogo lá em baixo, os gritos ocasionais, a bola a bater contra o asfalto. No bloco em frente um académico desapertava o nó da gravata, abria a sua janela, pousava uma cerveja no parapeito e acendia um cigarro.
Eu tenho tido sorte, porque depois disto tenho estado em lugares onde o barulho das conversas de amigos encheram as minhas noites de varanda aberta, lugares onde os estranhos de há uns dias se vêm despedir de nós dando-nos um abraço, a imaginar que isto seja um ritual muito velho, como quando os gregos de há séculos atrás viajavam e era uma ofensa cometida contra os deuses não os acolher com hospitalidade se eles se viam sozinhos numa cidade estranha, ao mesmo tempo um vislumbre da nossa vulnerabilidade, que explica também por que é que a piedade para os gregos não era, como veio a ser depois para os cristãos, inextricável de um sentido de pecado, mas um sentido partilhado, comum, de vulnerabilidade humana. Mas olhando para trás, há qualquer coisa na solidão daqueles dias que regressa como uma espécie de espiritualidade. Filhos de alguém, netos de um bando de outras pessoas, acostumados a certas ruas e com amigos que habitam certas moradas, com quem frequentamos certos cafés ou percorremos determinadas ruas, familiares com uma certa latitude, completamente habituados a sermos imediatamente inteligíveis nas inflexões mais mínimas da primeira língua em que convivemos, nos primeiros meses de distância nós viramos versão de São Sebastião, um desses não ao género do de Giovanni Baglione, disponível para ser curado, mas antes aqueles de semblante mais sofrido, porque toda e qualquer coisa pode virar mais uma seta a somar a cada um dos ínfimos vidrinhos com que a nossa identidade é reexaminada, com que repensamos o modo como vivemos, as coisas em que acreditamos e que determinam não uma rotina, mas todos os nossos rituais.
Um lugar que não temos quaisquer intenções de revisitar, que não nos disse muito, para além de umas semanas num verão aborrecido, de outro modo o único intervalo seco no primeiro verão da minha vida em que vi chover todos os dias sem uma folga, e uma pressa de nos virmos embora pode, no entanto, dar-nos alguma coisa. No caso daqueles dias, somando tudo, uma dupla distância. A negação de uma coisa de que estive à espera durante muito tempo, a ideia de que é possível alguém perder-se completamente se suficiente distância lhe for dada. Não é verdade. Há algures entre o estômago e a espinha uma pedra que é indestrutível e não pode ser removida nem por terceiros nem por nós. A regra diz que ela nos pertence a nós e a quem a quisermos confiar e isso explica porque é que não nos podemos perder inteiramente. O que me lembra a história com Orvieto. A autora que eu estava a ler nesse Verão, na verdade uma das grandes epifanias espirituais do meu aprendizado de cedência do nó de ligação à terra mãe (todo o emigrante pensa, nos primeiros tempos, que a corda foi posta à volta do pescoço, alguns descobrem com alívio que afinal era só um tornozelo ou um pulso, o que permite ir esticando, outros, os afogados, entendem logo que isto é a sério e que não há volta a dar-lhe), era Anne Carson. O livro que eu estava a ler era Glass, Irony and God. Um dos poemas do livro narra uma viagem a Orvieto e um encontro com as cenas pintadas por Luca Signorelli, em 1499, na capela da catedral que é agora conhecida como capela Signorelli. Desses painéis, uma série deles são cenas da Commedia e um deles é a cena do Purgatorio III em que os mortos reconhecem que Dante está vivo porque ele é o único que possui uma sombra. Mas quem olha para a cena vê que Signorelli atribuiu sombra a cada uma das figuras. (O duque de Orvieto, mecenas da obra, não deve ter ficado contente.) A presença de sombra é normalmente explicada pela incapacidade de Signorelli de contrariar a sua educação naturalista, ainda que o texto de Dante seja claro sobre o que é que estar morto exige em termos de corpos e intersecção de luz. A segunda parte do poema de Carson, no entanto, nega a hipótese de que isto possa servir como alguma espécie de explicação do carácter de Signorelli. Uma noite Signorelli ficou a pintar até tarde no seu estúdio. A meio, Signorelli é interrompido por um bando de homens que irrompem pela porta, trazendo o cadáver do filho de Signorelli, morto numa escaramuça. Signorelli passa a noite sentado junto ao corpo, fazendo esboços do rosto. Carson explica que a partir de então todos os anjos de Signorelli têm a mesma cara.
Quem sai do frio húmido da catedral de Orvieto para o sol e para o dia claro, numa tarde qualquer de primavera, não consegue sacudir a impressão de que não há nada de errado com Signorelli ou com esta história, que ela é sobre aquela parte da natureza humana em que todas as grandes reviravoltas nos enredos se alicerçam, e que também não é sobre o apontar de dedo de uma moralidade triste e medíocre: “eu gosto de pessoas genuínas,” no sentido das que são coerentes, que só querem ficar bem arrumadinhas consoante o que se queira delas, o que muitas vezes tem apenas a ver com a expectativa de que sejamos de certo modo consoante certos contextos apenas para que os outros se sintam agradados. Os anjos de Signorelli, todos com a mesma cara, lembram que nós não nos reduzimos a um repositório de características a partir dos quais o carácter pode ser conhecido, na diferença entre as sombras da catedral de Orvieto e a subsequente horda obcessiva de anjos com o mesmo rosto, há uma atestação da força brutal do que vamos sendo quando não queremos ou não nos podemos conformar ou acostumar com o que nos acontece, a outra coisa daqueles dias em Varsóvia, a beber café de um copo de papel com vista para um subúrbio meio em ruínas, a aleatoriedade, a alegria assustada de reconhecer de longe que um número de coisas não estão ao nosso alcance nem nunca se vão pôr sob o nosso controlo.