O drama dos objectos: notas sobre o "close-up" em Ozu
/Quando Béla Balázs afirma em Theory of the Film — Character and Growth of a New Art que o close-up tem a capacidade de revelar «a vida escondida das pequenas coisas», desenvolve uma tese crucial para um entendimento esclarecido do conceito de «microdrama» e das suas implicações formais e estéticas no cinema. Para Balázs, estas serão tanto mais dinâmicas quanto mais amplo for o espaço fílmico que lhe é concedido pelo cineasta. Reflectir sobre estas ideias aplicando-as em particular aos filmes de Yasujiro Ozu pode revelar-se um exercício com conclusões interessantes, já que um dos aspectos que mais cativa o espectador da sua obra consiste na observação do modo como estas «pequenas coisas» são enquadradas cosmicamente.
Ozu é apontado pelos técnicos e actores com quem trabalhou frequentemente pelo carácter atento e pelo empenho — tocando, por vezes, num perfeccionismo desmesurado — em controlar todos os detalhes da mise en scène, podendo assim potenciar ao máximo a amplitude emocionalmente contida dos seus planos numa prática cinematográfica em que a imagem é dada ao nível do essencial e conforme uma justa medida. O equilíbrio passa a dominar a construção do plano, afastando a possibilidade da representação do «nervosismo moderno» (Simmel) e a demonstração efervescente dos sentimentos das personagens. Neste sentido, o uso do close-up é indispensável e assume uma função dupla na transmissão visual do conflito das vidas retratadas na película: por um lado, a suspensão da narrativa e o corte espácio-temporal; por outro, a concretização da imagem-afecto de Deleuze. As dificuldades e anseios com que as personagens de Ozu se deparam situam-se invariavelmente na dimensão do banal e do quotidiano, interessando-se os filmes pelos problemas do homem comum (naquilo que posteriormente se veio a designar por shomingeki) e pela forma como este lida com situações universais, que têm também lugar na vida do espectador. Mas o objectivo realiza-se não só pela atenção dada à vida das pessoas, como também pela visão da vida dos objectos. Assim, pode-se falar num cinema descritivo e contemplativo em que Ozu se serve do close-up para trabalhar o conceito de «rostificação das coisas» ou de microfisiognomia (Balázs).
Esta utilização das propriedades do plano que têm o poder de despertar a eloquência material parece atingir o seu apogeu no final de Banshun (1949). O filme é a primeira inscrição no conjunto de filmes vulgarmente designado por Trilogia de Noriko, título que faz referência ao nome partilhado pelas personagens interpretadas por Setsuko Hara nas três obras. Embora Ozu nunca tenha explicitamente declarado que estas pudessem ser encaradas enquanto complementares, é indubitável que todas elas representam variações sobre temas constantemente trabalhados e aprofundados pelo próprio: o casamento, o consequente abandono da casa da família por parte de uma filha e as alterações provocadas por essa situação. Em Banshun (Primavera Tardia, na tradução portuguesa), o patriarca, já viúvo, insiste no casamento de Noriko, persuadido por uma tia notoriamente preocupada com a aparência e reputação da família, já que ainda se enquadra no tradicional sistema japonês. Contra a sua vontade, Noriko fá-lo e a última sequência corresponde à entrada do pai na casa vazia, exemplificando as «imagens como entidades» (Deleuze). Depois do plano geral da personagem isolada no centro do enquadramento, e sem outra forma de iluminação para lá do candeeiro (produzindo um subtil chiaroscuro), a acção de descascar uma maçã é filmada em close-up. Nesse momento, a percepção de que a vida se alterou radicalmente dá origem a uma tristeza que se reflecte visualmente na suspensão da tarefa: a faca deixa de se mover em torno do fruto. A tragédia é dada pelo sentido que a imagem encerra em si própria, ao invés de uma observação geral dos acontecimentos. «Não uma imagem justa, mas justamente uma imagem», para trazer Godard ao debate.
A forma, encarada como banal e completamente ignorada no plano da vida, adquire um novo significado no plano da arte, sendo mais um dos exemplos que dá razão ao que Wilde afirmava. Assim, Ozu materializa a visão de Balázs do «cinema revelador» num momento genesíaco em que o mundo é realmente descoberto pela primeira vez. Cumpre-se o propósito do close-up enquanto elemento de um trabalho de personificação dos objectos e de «visibilização do invisível». É curioso notar, no campo da invisibilidade, que num filme em que a ritualidade e as festividades desempenham um papel tão importante — recorde-se a maravilhosa cena de ciúmes de Noriko durante o Noh — a elipse é também aplicada à cerimónia nupcial, tornando-se esta num vazio narrativo que não pode ser mostrado. Mais do que a «produção de emoção conseguida através de uma resistência à emoção» (Bresson nas Notas sobre o Cinematógrafo), parece ser a ocultação de um sentimento que pertence apenas aos membros daquela família: não temos o direito de nos envolver ou interferir no curso da renovação associada à passagem das estações. A ideia é ampliada e complexificada em Bakushû (1951), em que a instituição casamento já não encontra eco nas jovens despreocupadas e seduzidas pelo modo de vida ocidental; o cinema de Ozu é também espelho das transformações histórico-culturais do Japão. Ao contrário do que sucede em Banshun, neste filme a jovem não se casa com o par proposto pela família, mas com alguém que, aparentemente, foi escolha sua. Se Noriko fica em melhor estado com esta decisão, o mesmo não se pode dizer do restante núcleo familiar, que mesmo assim sofre mas aceita.
Para concluir, e ainda sobre as características da imagem-afecto, Noël Burch comenta em To the Distant Observer: Form and Meaning in the Japanese Cinema que os close-ups que focam os objectos em Ozu traduzem uma ideia assertiva de que «o Homem não se encontra no centro do universo». Deste modo, a tragédia do pai é também a tragédia dos objectos e dos espaços sem a presença de Noriko. Por intermédio da prosopopeia, Ozu dá voz às coisas (da mesma forma que Francis Ponge o faz na poesia?) e integra todos os elementos da realidade num drama duplamente minimalista, por se dar do lado das coisas e pela inexistência de explosões do pathos no seu cinema: mesmo a desilusão face à própria existência, que se confessa em 1953 em Tôkiô Monogatari («Não é desapontante, a vida?»), é aceite de forma estóica. Lições de vida e lições de cinema.