Bach, ou o silêncio
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Se há alguém que deve tudo a Bach, é seguramente Deus.
E. M. Cioran
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Durante uma aula, e enquanto os alunos faziam uns exercícios, coloquei as Variações Goldberg. Foi o silêncio total.
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Deixei de acreditar na existência de Deus. No entanto, sempre que ouço Bach essa minha não-crença desvanece. Quanto a mim é impossível um homem ter escrito música tão bela sem uma ligação directa a Deus. Se Deus existir, Ele está na música de Bach.
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Por exemplo as Suites para Violoncelo. É nas pausas, nos silêncios, que mais vezes ouvimos o violoncelo respirar, recuperar o fôlego. Diz-nos algo que está para lá das palavras (que Bach me perdoe o cliché). Há uma Voz que nos diz que não devemos ter medo, que tudo irá correr bem. Essa Voz só pode ser concebida através da música. É aí que reside toda a grandeza de Bach: nessa Voz que só a música pode criar, pois de outra maneira ela seria ruído, estrondo.
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Ao ouvir Bach todo o Homem hesita entre a crença em Deus e a não-crença em Deus. Ou nos Deuses, se preferirem. Ou no Divino. Esta é a principal característica da música de Bach: o contacto directo com algo que transcende o Homem, que lhe é superior, que o confronta com a sua pequenez, com a sua inequívoca mortalidade. Os Concertos de Brandenburgo não são o melhor exemplo para exemplificar esta minha posição. Foram, no entanto, a primeira obra de Bach que ouvi. Até os ouvir julgava que todo o Barroco era um amontoado de exageros, superficialidades, devaneios que não levavam a lugar nenhum. O que só prova a minha ignorância. Ora os Concertos de Brandenburgo foram uma revelação, uma manifestação de um Poder que, até então, acreditava não existir. Com essa primeira audição instalou-se em mim a dúvida, a inquietação.
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Bach está para a música como Newton e Einstein estão para a Física. Sinceramente, não sei se já vi isto escrito em algum lugar. É provável que sim. Não consigo conceber as descobertas de Newton ou Einstein sem inspiração Divina – seja lá o que isso for. Com a música de Bach é a mesma coisa. Ninguém fica indiferente, por exemplo, a qualquer uma das suas cantatas. É humanamente impossível. Nessa impossibilidade reside o Divino em Bach. Talvez seja uma mera suposição. Mas há algo que nos ultrapassa quando ouvimos Bach, que não é explicável, que simplesmente é. E tudo aquilo que é ultrapassa-nos, projecta-nos para um outro patamar, onde Homem e Divino se encontram, tocam, são. E a música de Bach tem a capacidade de ser.
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Não é estranho afirmar que a música de Bach tem uma forte componente teológica. Arrisco-me a chamá-la de teomúsica. Toda ela foi escrita para o Homem comunicar com o Divino, para estar mais próximo dele. Pensemos num exemplo: A Paixão Segundo São Mateus, BWV 244. Baseada nos capítulos 26 e 27 do evangelho de São Mateus, ela procura retratar os últimos dias da vida de Cristo, o seu sofrimento. Mas Bach (em todo o seu génio) vai mais além. Ele procura colocar o Homem em contacto directo com o Divino, transformando a sua música no veículo que permite esse contacto. Ela é, em certa medida, a única linguagem que Divino e Homem entendem e conseguem utilizar. Sem ela só haveria ruído.
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Uma coisa é certa: não sou conhecedor profundo da música de Bach. Apenas gosto de ouvir. Reflectir, talvez, sobre ela. Pensemos no Concerto de Brandenburgo n.º 3, no último andamento, o Allegro. Já aqui disse que toda a música de Bach se inclina para aquilo que designo por teomúsica, isto é, uma música que procura o Divino. Ora o Allegro do referido Concerto n.3 é, do meu ponto de vista, um exemplo que retrata bem essa procura do Divino. Este Concerto foi escrito para três secções de cordas – três violinos, três violetas e três violoncelos – não esquecendo a base de cravo, que é reforçada por um contrabaixo. No último andamento, o Allegro, a simbiose entre todos eles é, simplesmente, perfeita. Num crescendo os violinos abrem o caminho às violetas, que por sua vez combinam com o discreto cravo. Todo o andamento funciona como uma espécie de mantra, onde princípio e fim se confundem, são o mesmo.