Rua das Gáveas / Relâmpagos
/Era de noite na rua deserta.
Estávamos a escassos metros do ponto exacto
(e de mau gosto)
onde noutra noite menos negra
as nossas bocas enfim se saciaram.
Tenho esta infeliz inclinação
para fazer as melhores coisas nos piores lugares
para escolher as piores frases
para as conclusões mais importantes.
Não te peço a salvação, quero apenas que existas
ao meu lado:
serei instantaneamente melhor
e melhor a cada momento em que possa beber das tuas frases
e meditar no teu sorriso
e suar no teu pescoço
e respirar pelos teus olhos.
Era de noite na rua deserta onde
eu consegui fazer o impensável:
como se tivesse uma arma de balas de borracha
a disparar contra o teu corpo
e esperasse que ao esgotar as munições me abraçasses
e me dissesses que compreendias
aquela absurda forma de te dizer:
quero-te na minha vida.
Esperasse que ao esgotar as munições
o teu corpo não sofresse as convulsões
que a tua voz dissimulava em frieza.
Que ao esgotar as munições
não tirasses do teu coldre tu também a tua arma
(e como doía
cada bala que eu merecia).
Como se esperasse que ao esgotar as munições
não me invadisse num relâmpago
o pânico e a lucidez e um relâmpago,
um relâmpago a rasgar-me o diafragma quando as tuas
mãos feridas
me envolveram o corpo ferido e a tua boca
sôfrega buscou a minha
e por uns segundos um minuto uma vida a eternidade
a todas as feridas veio a salubridade.
Depois partiste pela rua deserta.
Era de noite.
(Eu estava errado e tu estavas certa.)
Deixa-me crer nesta ornitologia de bolso:
antes falhar um golpe de asa ao descolar
do que quebrar estrondosamente em pleno voo.
Pousemos pesadamente sobre o chão.
Agitemos os braços com força até lhe apanharmos o jeito
há tantas cores que não conheço nos teus olhos.
Dá-me a tua mão
voamos juntos para dentro deles
pelo meio dos relâmpagos que nos alumiam o peito.