PRIMO LEVI EM TEMPOS DE CÓLERA
/Ler Platão é uma actividade que se persegue com tempo entre mãos. Um amigo meu, um académico dinamarquês que está a escrever uma tese sobre Platão, tende a racionalizar qualquer problema pensando em Platão. Durante uma longa parte do tempo em que ambos estávamos a escrever as nossas teses no mesmo país, adquirimos o costume de nos encontrarmos todas as manhãs. Ele, assumia o papel de Sócrates, falava-me em Platão e eu respondia-lhe em Homero. Platão tinha questões com poetas, como reagiria ele à capa de hoje do inenarrável Daily Mirror (talvez em modo Bukowski: I see where I have made plenty of poets/ but not so very much/ poetry)? O sistema político em que vivemos hoje é uma democracia? Não, Platão descreveria isto como uma oligarquia. Mas concordarias que um poeta pode descrever uma mesa ou uma cadeira mas não construí-la?
Perguntas deste tipo povoavam as nossas sessões e estas sessões às vezes levavam a becos sem saída, quando tínhamos sorte, a discussões sobre os problemas mais concretos, sobre coisas que mais nos interessavam, ou que na altura nos preocupavam profundamente. Porquê ler Platão? Platão é um autor que nos obriga a perguntarmo-nos todas as perguntas que importam: o que é justo?, qual a melhor maneira de viver na cidade?, qual a melhor maneira de governar a cidade?, como podemos viver bem a nossa vida?, como devemos vivê-la?, qual o papel do amor nas nossas vidas?, na nossa moral? Se suspeitarmos de Platão nas doses certas, nas quantidades certas, vamos amá-lo para o resto da vida. Quando somos ainda muito jovens e lemos o Fédon não temos como não acreditar que Sócrates inventou o espírito humano. Não importa tudo o que vamos aprender a seguir, não importa se depois disso não temos como não amar a chateza sóbria, pragmática e honesta de Aristóteles, que ao contrário de Platão tinha uma fé inabalável na habilidade dos humanos para aprender a bondade, o que às vezes penso é o único grande ponto de ruptura entre Aristóteles e Platão, o motivo pelo qual o discípulo se afasta do mestre.
Ler Platão é uma actividade que devemos perseguir sobretudo no que um amigo meu costuma definir com recurso a Ruy Belo, em tempo detergente. Uma porção considerável das nossas vidas decorre em tempo detergente. Devemos ler Platão em qualquer altura, mas sobretudo em tempo detergente. Quando estamos deprimidos, quando carregamos connosco a humilhação de uma dor cinzenta, os nossos sonhos quando morrem, a esperança de um tempo inteiramente de portas fechadas, um amor que reconhecemos ao olhar para a sua cara doente que ele vai apodrecer até se tornar na nossa maldade, quando nos sentimos rodeados de mediocridade e a única resposta ao nosso alcance é a da reciprocidade básica de todos os nossos instintos banais, esta desarrumação em que temos dissipado os dias, é aí que mais precisamos de Platão. Devemos ler Platão quando reconhecemos o pior de nós ao virar de cada esquina, Platão pode ajudar-nos a combater o pior da nossa personalidade, conceder-nos, se mais nada, a distância vital da ironia.
Enquanto a lenta abolição de uma educação em artes liberais não for inteiramente substituída pelo cenário catastrófico de um treino escolar que sirva simplesmente as necessidades de um mercado de trabalho, uma educação que não permita a um indivíduo inventar-se a ele próprio, que incentive apenas a demagogia triste de estudos que inspirem uma mentalidade meramente utilitária, o Banquete continuará a povoar a imaginação de adolescentes pelo mundo fora, com respeitáveis figuras públicas da Atenas do século V em versão drunk & horny men invent love, e o inegável sex appeal de Sócrates, definido por Alcibíades como inversamente proporcional à sua aparência física, continuará a inspirar esperanças talvez pouco razoáveis em todos os adolescentes que não lograram ficar bem em nenhuma fotografia.
Ler o Banquete é como adoecer. Não é uma descrição apelativa, esta, mas é o que é. Outras coisas nos serão dadas enquanto a maleita faz o seu trabalho. A mais importante delas relaciona-se com a descrição que se pode ler na capa da edição deste discurso para a série Penguin Books Great Ideas: “our human race can only achieve happiness if love reaches its conclusion.” Esta edição contém uma das traduções mais agradáveis e mais bem conseguidas do texto platónico, a de Christopher Gill. É possível adquiri-la por cinquenta cêntimos de libra, um preço que, já agora, nos lembra o quão saudável é desprezar livros.
O que é que se discute neste diálogo? O papel do amor na formação moral do indivíduo (qualquer introdução à obra dirá que, mais do que prescrições pronunciadas a partir de uma posição de autoridade moral, o que preocupa Platão é o processo, como é que o amor faz parte desse processo), o seu papel na felicidade, na criatividade, no (re)conhecimento da nossa natureza e no (re)conhecimento da dos outros. O papel do amor na vida da mente, na vida social e política. Quando chegarmos ao fim do diálogo, e estivermos mesmo nas últimas páginas, outro pensamento terá ganhado raiz. Enquanto Sócrates se diverte a desfazer a ingenuidade de Ágaton (o amor é um deus belo), com a perícia do professor que será sempre percebido pelos seus alunos como o super-herói, a ideia básica na sequência lógica de todas as que a precederam ganha forma. O amor é uma forma de desejo, a necessidade de alguma coisa. Uma das personagens, o tragediógrafo Aristófanes, já tinha aludido a isto ao narrar o mito das almas gémeas: os humanos são apenas metade dos humanos originais (um crítico da BBC em tempos imaginou estes humanos como sendo um pouco como o homem de Leonardo Da Vinci e esta ideia agrada-me), e foram separados ao meio pelos deuses, porque estes temem a arrogância da criatura. Assim, os humanos não se podem reunir como dantes, e morrem com a ausência do outro. Os deuses resolvem isto com uma modificação nos orgãos genitais, permitindo a cada alma gémea que esta se reúna à sua, uma vez encontrada. Esta abstracção tão literal encerra outra, mais vaga. O desejo é uma coisa que move a nossa perseguição de cada descoberta, os caminhos que escolhemos.
Há lugares a que vamos chegar sem escolha. Num dos poemas mais belos do século passado, “I dream I am the death of Orpheus”, a poeta americana Adrienne Rich explica a sensação que isto causa:
I am a woman in the prime of life, with certain powers
and those powers severely limited
by authorities whose faces I rarely see.
I am a woman in the prime of life
driving her dead poet in a black Rolls-Royce
through a landscape of twilight and thorns.
Adrienne Rich em The Will to Change, Norton, 1971.
Aos lugares a que vamos chegar sem escolha, importa o nosso percurso, para nos lembrarmos bem de quem julgamos que somos, para sermos capazes de sobreviver à imposição dos factos da vida sobre a nossa personalidade. Não o que é esperado de nós, não as expectativas das “authorities whose faces I rarely see”, mas o que carregamos connosco. No alongado olhar que Platão demora sobre o espírito humano no Banquete pode ler-se que o amor (Eros) nasceu de um encontro fortuito entre a Pobreza e o Recurso (sendo que o Recurso etava embriagado e a Pobreza tira vantagem). Segundo Sócrates, é por isso que o amor é sempre pobre, não é nem sensível nem belo, como a ingenuidade de Ágaton sugere, mas seco, com a pele endurecida, sem sapatos nem casa. E Sócrates diz-nos que o amor dorme no chão, sem cama, nos limiares das portas ou pelos caminhos. E porque ele partilha da natureza da mãe, ele tem sempre necessidade de alguma coisa. No que se parece com o pai, ele anseia por apoderar-se do que é bom e belo. Sócrates diz: o amor é corajoso, impetuoso e intenso, um caçador formidável, sempre a preparar o próximo truque. E conclui: um amante da sabedoria para sempre, esperto a manipular magia, drogas e sofismas. O amor, segundo Platão/ Sócrates, é a nossa mente colorida no grau mais interessante. O amor é o desejo, constantemente. E há nele algo de intrinsecamente divertido, vindo do lado do riso (a embriaguez do recurso, essa metáfora que explica o lado hermético do amor), um pendor do estado de ser livre quando este se parece com a descoberta da alegria, com as fontes da felicidade.
Sobre Sócrates circulam anedotas acerca de quando ele cumpriu o serviço militar, de como ele era capaz de passar um dia e uma noite parado no mesmo sítio, a meditar sobre um assunto em pleno tempo de batalha. A vida moral de um indivíduo exige uma imensa quantidade de tempo para se desenvolver, uma imensa quantidade de solidão para que se chegue a distinguir com nitidez os contornos do vasto continente da nossa imaginação que pode ser iluminado pelo nosso amor. O discurso de Platão é um tributo a isso. Sócrates, se acreditarmos no relato em terceira pessoa de Platão, vislumbrou-o numa noite de vinho e insónia em Atenas, na casa de Ágaton, talvez sobretudo na antecipação da humilhação despeitada e desajeitada de um amante que não consegue instilar nele a quantidade necessária de igualdade para que o amor funcione. Sócrates não ama Alcibíades, e enche a noite com um discurso assente sobre a sabedoria de uma amante anterior, Diotima, com a memória de uma longa conversa, que abunda na lógica da dialéctica, pela qual é hábito examinar-se alguém a uma certa distância. Há que amar o bom senso de Platão, que na presença e no discurso de Alcibíades desautoriza Sócrates apenas o suficiente para que nos lembremos o que é um amante, e que também o super-herói vive à escala humana.
Em A Tabela Periódica, Primo Levi no capítulo dedicado ao elemento do fósforo, recorda um amor de juventude. Sobre o momento da separação definitiva, quando o que não pôde ser evitado, regressa, à distância de anos, no trabalho da examinação tardia, como uma revelação, Levi escreve:
I felt growing within me, perhaps for the first time, a nauseating sensation of emptiness: so this is what it meant to be different: this was the price for being the salt of the earth. To carry on your cross bar a girl you desire and be so far from her as not to be able even to fall in love with her: carry her on your crossbar along Viale Gorizia to help her belong to someone else, and vanish from my life.
Primo Levi, The Periodic Table, Raymond Rosenthal (trad.), Penguin Books, 2000.
Platão é o autor a quem se atribui aquela máxima sobre a vida que não é examinada não valer a pena ser vivida (o contrário é ainda verdade, uma vida insuportavelmente examinada também não pode ser vivida). Primo Levi é outro autor que merece ser lido em tempo de crise. A única coisa para que o exame das perguntas de Sócrates, as suas soluções, não nos preparam, podemos encontrá-la extremely loud & incredibly close na autobiografia de Primo Levi, que o carácter moral de um homem pode estar certo, ser certo (a escrita de Primo Levi obedece ao critério da tríade platónica: bom, belo (mais do que tudo talvez na ideia da redenção do horror pela intuição de que tudo o que é humano não nos é alheio e o que é digno de condenação precisa de ser olhado de frente, de olhos bem abertos) e justo), ser de uma qualidade na ordem do que o discurso de Platão pretende inspirar, e ainda assim o resultado continuar a ser a dor inesgotável cuja única condição para ser experimentada é estar vivo. Mas, é também neste aspecto que a nemesis de Platão pode ser encontrada. Ao ler Primo Levi em tempos de cólera, lembramo-nos à distância do eco de outro escritor judeu, Saul Bellow em As Aventuras de Augie March, naquela cena em que uma das personagens diz a Augie que, no fim das contas, não é possível salvar a vida ou o espírito por pensar, mas, se pensarmos, o mínimo dos prémios de consolação é o mundo.
Não existe absolutamente nada de frívolo ou de acessório no Banquete de Platão. Continuará a ser, antes e depois da tonalidade de qualquer tempo, uma dessas ferramentas preciosas para a perseguição do lento e difícil trabalho de nos mantermos humanos. E se vocês se estão a perguntar porquê, aqui podíamos acabar com o Banquete de Kundera:
Just because it is groundless. If there had been a reason, it would have been possible to find it in advance, and it would have been possible to determine my action in advance. It’s just because of this groundlessness that a tiny scrap of freedom is granted us, for which we must untiringly reach out, so that in this world of iron laws there should remain a little human disorder.
Milan Kundera, “Symposium”, Laughable Loves, Suzanne Rappaport (trad.), Faber & Faber, 1999.
Oxford, 6 de Agosto de 2015 & 17 de Agosto de 2015