Pelos olhos da mariposa

são três da manhã, você não consegue dormir. Seus olhos já vagaram pelo quarto todo, as paredes brancas são brancas apenas no espectro que resta na sua mente porque o escuro mastigou tudo, mas seus olhos estão abertos, a tela do celular projeta imagens e mais imagens que são como um paliativo para os sonhos que você não está tendo. Você nem lembra quanto tempo faz desde a última vez que acordou com as imagens refletidas no fundo do olhos ou quando alguma criança chorando a tarde, no apartamento ao lado, te lembrou de repente a estátua da Pietá translúcida que percorreu tua noite anterior. O som dos teus cílios roçando o travesseiro quando você pisca é a única coisa que interrompe o silêncio imediato. Ao longe ressoam carros, mas a sensação é de que o mundo termina logo atrás das paredes, o resto são irrealidades inúteis. Seu corpo dói, como se estivesse atado ao colchão ou como se você tivesse praticado esportes durante a tarde, o que jamais seria um fato porque as vezes você sente que seu corpo é feito de vidro, ou do mesmo material que as asas de uma mariposa. Hoje você viu uma mariposa negra no banheiro e ao pensar na sua fragilidade a imagem se levanta, te cobre os olhos. Que seria de você se fosse realmente tão frágil como as asas? Os teus dias cansativos seriam algozes, Caronte te levando na barca, você percebe que Caronte é a figura mais intensa do Tempo. São três e quinze da manhã, você vai levantar cedo, provavelmente o despertador começará às sete, quando os olhos se abrirão para perceber que mais uma vez não há memória de um sonho qualquer, nenhuma imagem, nenhuma cor. Talvez então você pense em mentir, porque te é tão estranho não ter uma fantasia se manifestando quando é isso que a psicanálise diz que acontece, e você não quer duvidar,  sãopoucas as tuas chances e se eliminar cada uma delas só vai restar acordar todos os dias para perceber tuas qualidades de mariposa, de coisa tola, ignorada, você vai se encarar como o sendo comum encara a mariposa, uma cópia mal feita de uma borboleta. Mas é que a mariposa tem sua qualidade naquilo que falta à borboleta, sutileza, silêncio, não o berro da cor da borboleta. Mas o bater de asas da mariposa é o frenético debater-se do afogado, a mariposa e você se afogam na realidade da noite, e você não tem nem o alívio do votar, o alívio do sonho para que sua realidade se torne menos intragável. Amanhã acordará apenas para receber a vida em ondas opressivas se movimentando através dos vazios da rotina opaca, desnutrida de fantasias, que tem levado pelos últimos meses e que é como se você esfregasse o pó das asas da mariposa nos olhos, cada vez mais cego, incapaz de ver a luz no fim do túnel.

 

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