Notas do meu notebook
/O EXCESSO MAIS PERFEITO
Queria um poema de respiração tensa
e sem pudor.
Com a elegância redonda das mulheres barrocas
e o avesso todo do arbusto esguio.
Um poema que Rubens invejasse, ao ver,
lá do fundo de três séculos,
o seu corpo magnífico deitado sobre um divã,
e reclinados os braços nus,
só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,
e um anjinho de cima,
no seu pequeno nicho feito nuvem,
a resguardá-lo, doce.
Um tal poema queria.
Muito mais tudo que as gregas dignidades
de equilíbrio.
Um poema feito de excessos e dourados,
e todavia muito belo na sua pujança obscura
e mística.
Ah, como eu queria um poema diferente
da pureza do granito, e da pureza do branco,
e da transparência das coisas transparentes.
Um poema exultando na angústia,
um largo rododendro cor de sangue.
Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,
ao passar, parasse deslumbrado
e em desvelo. E ali ficasse, aprisionado ao cântico
das suas pulseiras tão (mas tão)
preciosas.
Nu, de redondas formas, um tal poema queria.
Uma contra-reforma do silêncio.
Música, música, música a preencher-lhe o corpo
e o cabelo entrançado de flores e de serpentes,
e uma fonte de espanto polifónico
a escorrer-lhe dos dedos.
Reclinado em divã forrado de veludo,
a sua nudez redonda e plena
faria grifos e sereias empalidecer.
E aos pobres templos, de linhas tão contidas e tão puras,
tremer de medo só da fulguração
do seu olhar. Dourado.
Música, música, música e a explosão da cor.
Espreitando lá do fundo de três séculos,
um Murillo calado, ao ver que simples eram os seus
anjos
junto dos anjos nus deste poema,
cantando em conjunção com outros
astros louros
salmodias de amor e de perfeito excesso.
Gôngora empalidece, como os grifos,
agora que o contempla.
Esta contra-reforma do silêncio.
A sua mão erguida rumo ao céu, carregada
de nada —
AMARAL, Ana Luísa. As vezes o paraíso (1998), Inversos poesia 1990-2010, Lisboa, Dom Quixote, 2010. pp. 295-296.
Notas do meu notebook: “O excesso mais perfeito”
What happens between us
has happened for centuries
we know it from literature
still it happens
“The burn of paper instead of children”
Adrienne Rich
1. Tese: exceder. Sair para fora? Excedere, ex/cedere. O excesso. Tudo aquilo que sai para fora? E, no entanto, o mais perfeito: “um poema de respiração tensa/ e sem pudor”.
2. O corpo da tese: “a elegância redonda das mulheres barrocas/ e o avesso todo do arbusto esguio”. Paragem. Perguntas: quantos significados poderá ter “o avesso todo do arbusto esguio”? Respondes: uma imagem impossível dentro de um poema impossível.
Perguntas ainda: e a elegância dos homens barrocos?
O poema não responde.
3. O poema invejado por Rubens é, por enquanto, imagem: “corpo magnífico deitado sobre um divã,/ e reclinados os braços nus,/ só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,/ e um anjinho de cima,/ no seu pequeno nicho feito de nuvem,/ a resguardá-lo, doce”. Tem duas dimensões visuais: Horácio (ut pictura poesis[1]) ou, talvez, Simónides (pictura locguens, pictura poema silens[2])?
O poema não responde.
4. As cores do poema antecipam um corpus passível de ser tocado: “Um poema feito de excessos e dourados”; “ah, como eu queria um poema diferente/ da pureza do granito”. O mesmo corpus cresce à medida do poema: “um largo rododendro cor de sangue./ Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,/ ao passar, parasse deslumbrado”. O poema repete-se: “nu, de redondas formas, um tal poema queria”. É um poema que pede outro poema. Um poema-pedido. Uma reza (“My passion comes from the heavens, not from earthly musings”[3])?
5. “Contra-reforma do silêncio”. Voltas atrás. Paras, por momentos, na palavra barroco. Pensas: o excesso não é silencioso. O verso seguinte vem confirmar-to: “Música, música, música a preencher-lhe o corpo”. E o ritmo acelerado dos versos que se seguem também. Deves lê-los rápido até à “explosão da cor”.
6. Rubens, agora Murillo. Gôngora, logo depois. Todos empalidecem diante do poema que não existe. Rubens, Murillo e Gôngora são homens. Rubens, Murillo e Gôngora pertencem ao cânone. São os pais do excesso. De que forma podes, então, pertencer ao cânone? Queres dizer: podes pertencer-lhe sem passar pelo reaproveitamento ou pela superação dos seus pontos excessivos?
Mais: como negar este cânone? Superá-lo é negá-lo. E o poema que não existe nega Rubens, Murillo ou Gôngora.
7. As mulheres retratadas por Rubens, Murillo ou Gôngora são o objeto estético da estética barroca. Sublinhas a palavra: objeto. Pensas: os poemas que falam sobre poemas que não existem são sempre enormes exercícios de ironia. Discordas veemente quando, num artigo, lês:
A influência e o reaproveitamento de modelos como desses artistas espanhóis na poesia de Ana Luísa Amaral é um recurso do qual a poeta se vale para dialogar com o cânone poético[4].
Existe, de facto, o reaproveitamento de certos modelos barrocos, mas o propósito desse reaproveitamento não é o diálogo entre Ana Luísa Amaral e o cânone que, efetivamente, a excluiu ou a secundarizou. O poema vai além disso: não há que integrar ou dialogar com o cânone. Importa questioná-lo — Quandoque bonus dormitat Homerus! —, criar outro. E a paródia do cânone masculino é o primeiro passo para a criação de uma nova linguagem: “A sua mão erguida rumo ao céu, carregada/ de nada —“.
8. O excesso é feminino. Corriges-te: o excesso sentimental é feminino. Corriges-te de novo: o que significa “feminino”?
Se feminino significa objeto, eis o raciocínio: ao reaproveitar as formas de uma arte excessiva, serás (ainda) mais excessiva — porque és mulher. Este porque és mulher envolve as duas faces da mesma moeda. Há uma voz que te diz: — o cânone secundarizou-te ou excluiu-te porque és mulher. E a mesma voz, ainda: — Satirizas, destróis o cânone, porque és mulher.
[1] Ars Poetica, 361-5.
[2] The Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics. ed. Alex Preminger, Princeton, Princeton University Press, 1974, 881-2.
[3] Vide Samuel Levy Bensusan, Rubens: Masterpieces in color, IV, 2014, p. 4.
[4] Vide Márcia M. Araújo, “A nova poesia de Ana Luísa Amaral e Paulo Henriques Britto”, Letrônica, Porto Alegre, v. 4, n. 2, nov./2011, p. 169.