Incipere mori (do livro inédito e inacabado)
/11.
uma mulher constrói o seu próprio rosto. a pele espessa corrói-lhe a ponta dos dedos. ou talvez tenha sido do fogo.
(afinal esta é outra história).
a mulher reconstrói o rosto devorado pelo fogo. carrega a desfiguração do mundo. um mundo amedrontado. entre pinceladas o fogo arde calcinando a penumbra que a cobre. coloca o corpo num mastro para se ver a arder numa morte calma e definitiva e sem mistérios.
12.
poderia começar por dizer que o teu cabelo é o lugar onde os pássaros pernoitam, mas não digo. ou então, poderia dizer que o teu corpo na plenitude da nudez é o espaço onde os homens se escondem, mas não digo. ou então, poderia dizer que a tua voz em forma de palavras é a verbalização de todos os pecados, mas não digo. ou então, poderia dizer que a tua pele de uma textura gasta, de aspecto doente é o inóspito da pedra, mas não digo. ou então, poderia dizer que os teus gestos vagarosos são angelicais na sua simplicidade humana, mas não digo. ou então, poderia dizer que todo este gesto é homenagem simples ao corpo imóvel que está sentado diante de mim na esplanada e que não conheço e és a estória inventada da minha memória e dos destroços que a tua imagem causou com a sua presença.
13.
acordas e és a imagem doentia do espelho. lugar de avesso que mostra a direcção exacta da sombra. colocas a roupa sobre o corpo, passas os dedos molhados pelos olhos, e sais. arrastas-te pelas ruas carregando o próprio espectro. deitas-te num banco de jardim debaixo de uma árvore de pouca luz, de ramos decepados. escondes o corpo na sombra e esperas. esperas que a morte seja uma realidade contínua.
14.
o corpo movimenta-se ao ritmo do vento. bate contra o vidro como se de um insecto se tratasse. ritual de construção do tempo. espécie de dança para a transformação. desenhos traçados sobre a pele como forma de adormecer a luz.
exausta cai sobre o vidro. um desmoronamento. depois, são-lhe retirados um a um os micro-pedaços sepultados no corpo.
percebemos agora a edificação labiríntica dos desenhos traçados na pele.
deitada, acaba por adormecer para a construção de uma morte imaginária. é a invenção da palavra que prolonga o seu renascimento. o nascer luzidio da música. uma música sem voz. plenitude do silêncio onde tudo se repercute.
o corpo coberto pelos minerais levanta-se novamente para a dança.
recomeça assim o ritual da tua morte. feridas abertas na plenitude do êxtase.