Prece

O cão tinha desaparecido na manhã anterior. Ele só percebeu ao fim da tarde. Procurou-o pelo bairro e até ao porto, entrou pelas plantações e desceu até ao canal. Sem saber porquê intuiu que o animal estava morto, que tinha desaparecido de vez. Ao crepúsculo caminhou ao longo da estrada e esperou dar com o corpo na berma mas não encontrou nada. No caminho de volta ocorreram-lhe imagens dos cães de Pompeia, paralisados nos seus moldes de gesso, com os resíduos das coleiras que atravessaram os séculos à volta do pescoço, a marca de terem ficado acorrentados durante a erupção. O seu cão nunca seria encontrado preso a uma corrente. Tinha-o deixado sempre solto, mesmo se não esperava um cataclismo. Seu talvez fosse um exagero. Quem é de quem vai sendo cada vez mais difícil de dizer. No calor sufocante encheu duas tigelas de água e uma de comida. Sentou-se ao computador, procurou as fotografias mais adequadas, imprimiu cartazes. Deitou-se ao comprido no sofá e tentou não pensar no desaparecimento do cão. Pensou que se distraísse talvez queimasse tempo até ele voltar. Onde poderia ter ele ido ou quem o podia ter levado. Imaginou que tivesse sido o vizinho, por causa do cão ladrar à noite, ou que alguém o tivesse visto na rua, sem coleira e sem nada que o identificasse como pertencendo a alguém, e que o pudesse simplesmente ter levado. Mas ali toda a gente conhecia o cão. Toda a gente sabia que cão era aquele. Um cão não se esvanece simplesmente no ar, o seu desaparecimento não é o da ordem do desaparecimento de um fruto ou de insecto ou de um peixe. Um cão é uma presença funda e o seu desaparecimento é o da ordem do das criaturas vivas. O dano causado pelo seu desaparecimento é então da ordem da destruição. Marco Aurélio escreve nas Meditações que todas as criaturas morrem às carradas todos os dias, no vasto universo, que o desaparecimento de uma só vida, dada a imensidão do tempo e do cosmo, é insignificante. Que, até, sendo o universo tão vasto e não sendo a vida o que dela se espera, o melhor é buscar o seu fim, sem grande angústia, com uma certa dignidade natural. Enquanto se encaminhava para a casa de banho pensou se um imperador de Roma, autor de um livro não muito original e nem sequer particularmente imaginativo ou bem escrito, que ainda por cima desenvolvia circularmente apenas dois ou três argumentos limitados, alguma vez tinha cometido a íntima fraqueza de ter um cão preferido. Pois é. Aquela coisa. A ferida que o amor dos outros deixa em nós, que é, no tempo em que eles estão perto, essa antecipação que precede a longa aprendizagem da sua ausência. Ao mesmo tempo celebração e dor. No calor pontuado pelo canto das cigarras ouviu, ao longe, na mina, o vento a assobiar nas gruas. O alarme de um carro disparou ao longe. Ouviu as portas baterem. No interior da casa, as mãos tocaram o frio da torneira e água fria correu no chuveiro. Água fria lembrava-o sempre da infância, de tardes passadas a nadar no rio, irmãos e bicicletas. No silêncio do crepúsculo aquela pequena casa tinha ficado mesmo vazia. Nem sequer tinha dado pelas horas passarem. Fechou os olhos com força e esperou ouvir o som familiar do cão lá fora ao redor da água e da comida.