O homem que se dizia doutor

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 Leitão apresentava-se em público como “Doutor”. Doutor Nada, como o alcunhava quem o conhecia de outras paragens. O Doutor Nada, clarão de sofisticação, intrigava quem o avistasse à distância. Entufado, a deslizar o polegar pela vistosa gravata, a mesma gravata usada em todos os eventos sociais, cumprimentava este e aquele, insistia em desembuchar doutor, doutor, como se tivesse inventado a palavra. “Onde trabalha?”, inquiria um desvalido, deslumbrado com tanta luz. O Doutor Nada dissertava que desempenhava funções como professor universitário, que tinha contrato com meia-dúzia de departamentos académicos, e aditava, perdido de paixão pelo que afirmava, que ao longo das décadas vinha sendo convidado para as mais elegantes festas, que com cada vez maior entusiasmo vinha sendo aplaudido por onde passava, inclusive no supermercado, que deus era justo e misericordioso e que, caso desfrutasse de pachorra e saúde, aceitaria de bom grado representar-se a si mesmo em cerimónia a ter lugar, em meados do ano vindouro, numa freguesia recôndita lá para os lados do Sol Poente. Conquanto se dissesse professor de literatura, de filosofia e de línguas em geral, ignorava os nomes maiores da escrita. Se lhe perguntassem por Borges, a primeira imagem mental que o assaltaria era a de um jogador de sueca encafuado em tasca de província. Já o nome Séneca lhe recordava aquele camponês que se casara com a prima direita, a Regina. Quanto ao seu conhecimento linguístico - a sua especialidade -, hesitava entre confessar se era o francês ou o alemão ou o inglês o idioma que mais dominava, se bem que ainda ninguém o tivesse ouvido brilhar em qualquer língua, incluindo a sua nativa, o português. 

Tolhido pela desventuras da subsistência, Geraldo tinha-se em pouca conta, e nunca exibia o título de doutoramento que tantas dioptrias lhe roubara. Em certames sociais, encolhia-se num canto, evitava o convívio, mais do que três apertos de mão e remexia os bolsos à procura de aspirina. Azedo, revoltado contra a imbecilidade, Geraldo cruzara-se um par de vezes com a ilustre figura do Doutor, e em nenhuma delas ficara agradavelmente impressionado. Logo na noite em que o conhecera, Geraldo, tipo desprovido de sentido de humor, que levava tudo a peito, mesmo aquilo que não lhe dizia respeito, ficara com a sensação de estar na presença de um farsante que, ao se gabar de ser doutor em letras, ofendia quem tinha passado pela duríssima penitência de converter anos de investigação num documento legível. Doutoramento significava trabalho árduo. Geraldo ainda se condoía com a memória das semanas enterrado em arquivos, a levantar dados, a carregar fotocópias, a exasperar com a falta de qualidade de tudo o que escrevia e com as fracas perspectivas para o seu futuro académico, que mais lhe soava a uma continuação de um menu composto por latas de atum misturadas no arroz branco. Topara que o Doutor se fazia de mouco, que somente se mostrava afável na hora de bajular e dos artificiais abraços. Não lhe perguntassem pela dissertação ou pela sua especialização académica, pois não só não respondia como, impaciente, a bufar como se tivesse levado patada nas nádegas, evaporava para outro lado. E porque o doutor se esquivava a comentários sobre o seu currículo, Geraldo assumiu que aquele símio chamado Leitão era doutor apenas na aparência, no vestir, no gesticular, nos silêncios estudados que lhe mascaravam a estultícia.

A gravata a sufocar o pescoço do Doutor Nada era metáfora para a necessidade de calar, de não deixar cair a máscara. Separado da gravata ou a palrar, o Doutor revelava a sua verdadeira natureza, pendia para o banal, desengolia brejeirices. “Foi em 1998 que senti o peso da fama”, professorou um dia, rodeado de admiradores que lhe perdoavam o bafo de vinho. “Estacionei a viatura, como de costume entrei na universidade por uma porta lateral e, sem saber porquê, era ovacionado, as mulheres puxavam-me o casaco, desguedelhavam-me, apalpavam-me, pediam autógrafos, atiravam-me cuecas à cara.” Perdido entre os ouvintes, Geraldo ardia de raiva, sentia o impulso de disparar um soco em direcção ao saliente maxilar do Doutor, fugir dali a correr para uma biblioteca e ler, perder-se dentro de um livro, apagar aquela selvajaria, civilizar-se redescobrindo as linhas de um Quixote. Em vez de realizar os desejos, ali permaneceu a morder as unhas, a retorcer-se, a sorrir palidamente, a aguardar pela queda do inimigo - já não havia outra definição para o Doutor. Emborcada a quinta taça de vinho, lá lhe apareceu a coragem para encostar o fanfarrão à parede, exigir-lhe ideias filosóficas, conhecimentos sobre Leibniz, Kant ou Camões, mas o Doutor, habituado a bailar, a desviar-se da chuva, sorriu, mostrou-lhe uma esfíngica cara que aparentava sagacidade, e por aí se ficou, e tal atitude ainda mais encrespou Geraldo. Nessa noite, Geraldo, decidido a fazer justiça pelas próprias mãos,  não pregou olho. Queixar-se na polícia, cometer assassinato, passar o sacripanta a ferro com o carro para o amedrontar, em mil hipotéticas situações cogitou, mas à solução definitiva apenas chegaria na manhã seguinte, ao cruzar-se com o Doutor na estação do metro. Pensou Geraldo que bastaria um leve empurrão para que o Doutor fosse esmagado pelo metal, e convicto de que o mataria aguardou cinco eternos minutos, até que o comboio surgiu a rasgar o escuro. Na hora de cometer o crime, quem caiu para debaixo do comboio foi o próprio Geraldo.