Cartas de Hamburgo

I
nada aqui falta excepto um encordoamento
de afinidades
a casa leva o seu tempo
ergue-se da secura de lágrimas
um lago de sal vertido
enche-se de empréstimos
doações objectos indesejados e a barca
que nela aporta sobe e desce o canal
sôb bátega vento ou tímida estrela
atravessou já países em cada a desilusão
se plantou no casco fungo em árvore
alastrando as suas fibrilas até estrangular
com paciência a via da vida

voga e vai vazia nas vagas
nenhuma amarra a sustém
caronte não pesa nas suas tábuas
ficou na margem guiando barcos de papel em poças
em cada inscreve um nome que se dilui
amigo pai mãe irmão irmã mortos
nomes como deus ar no oco do corpo
ou batida da língua nos dentes com sopro sibilado
tanto a carregar no porão e vai cheio de nada
e o poema que se escreve é uma onda que recorda
as falsas despedidas prolongando as declarações
com a duração do momento
fósforo para a noite da esperança


II


desafiei a verticalidade inerente ao género
ergui braços para envolver o mundo dar sombra
ao caminhante atear a chama dos sonhos do cérebro
de uma criança ser morada do rato pardo
do esquilo do corvo respigador

os meus séculos anelares suportam-se de tanto
desejo com hastes de aço mártires e amantes
inscreveram com estilete ou chama as suas promessas
muitas delas hoje estão junto do meu coração
ou calam-se esperando o vento como mensageiro

vi impávida pacífica neutra
a ascensão e queda do terror
e permaneço ainda atenta ao que perdura
disfarçado como o outono pelos lábios
das folhas no entardecer do verão

tenho o dever de preservar a dinâmica dos pulmões
e tantas de mim se deram ao milagre da escrita pública
persisto no parque da cidade menos esquecida
por esta mão falando por mim enquanto de si
anseio as minhas raízes se ponham a andar


III


considerai as efémeras e sua loquacidade
a emergência vital por sobre as águas
bailado de instante em sua potência
de olhos distorcidos posso dizer é isto
esta enchente de corpos seguindo
a prédica de Sankt Pauli
a vida tem dois momentos
o entardecer e a aurora entre sexta e domingo

deixo-me ficar sentada no patamar povoo
o público e o privado ou o meu e o vosso mundo
atento aos passos moendo dentes
sendo senão garrafas estilhaçadas sob os pés
estrelas irradiantes à luz passageira
o babelismo da rua acode-me emudecem-me
as seduções e o asco de quem me observa
na oscilação do longe ao perto

nunca estou tão por dentro
como quando a química me enleva
numa homeostasia de pequenas percepções
leio cada mínima variação dos poros
a temperatura as dilatações da menina-do-olho
todos os signos de um outro alfabeto
desenrolando-se em silêncio e no escandecer
dos corpos pela minha vista de muybridge

sou o arco sobre o qual assenta a ponte
da realidade o frio a tremura conhecem-me
a pouco e pouco toda e agora mais sou o sentido
dos sentidos da história da vida do pensamento
estou além escutem considerai
as efémeras à medida que o coração descobre
a linha tendendo para o zero e a manhã
chega no canto da sereia


IV


a proibição tinha lugar pelo jardim
abriam-se porém adendas ao fechar dos olhos
mão enrodilhada na certeza e o tempo
afundando os arroios do rosto
aí espelhou-se o lamento rangente de árvores
um timbre harmonizado com o tambor do corpo

de entre a lama e erva azul de gelo pespontava
a brutalidade do amarelo e branco de narcisos
a nervosa segurança de coelhos e esquilos
julgando os teus passos o fungar o aroma
do batôn cerzidor da fenda do inverno nos lábios
moldados para o beijo o silêncio o chamamento

também outros animais te observam
e vigiam os gestos com medo e desagrado
são como tu mas não retribuis a interrogação
buscas a familiaridade e segues sereno de olhar
perdido em aterragens de patos nos esforços da galinhola preta
mergulhada nas águas desses falsos lagos de superfície vidrada

o mofante riso das cotovias e o saltitar dos destemidos
corvos alegram-te o passeio pelo parque
estes momentos são-te importantes dizem-te
ser este o caminho do desnudamento começando
por te livrares do peso do julgamento do outro
até que a trama da mão se alargue a todo o corpo

ao saíres és confrontado com a suja rudeza
do alcatrão cintilante de vidro e beatas cuspo e vómito
o patético fausto das luzes da dome as buzinas a vozearia
os encontrões e os ainda mais inquisidores olhares ensurdecedores
forçando-te a esquecer e desistir dos alvitres do amor e do futuro
ao longo das ruas de Sainkt Pauli até à montanha de Hamburgo

passas pela efémera ainda presa no seu instante
com ranho a escorrer numa pose de estátua de Gomorra
sobes os degraus de madeira e linóleo vibrando sob o peso da música
interminável e nessa casa de empréstimo aguardas a sua chegada
e do embate da rua o seu olhar e o mundo que és nasce uma resiliência
aderindo e cercando o nó enrodilhado da certeza na mão


V


não te aproximes demasiado
destas águas escorrendo lamacentas
por elas cruzam a obra do homem
e a cada vez a terra é galgada pela luxúria
                            e o suplemento

a queda é vertiginosa
dois três passos e és sorvida
pelo depositado lentamente no fundo
raízes troncos restos de vida
o vidro o plástico o ferro
outras obras desnecessárias
                     um poema
uma carta ao pai pedra para saltar
na superfície quando nela nada
passa
         um olhar perdido no que passou
e verteu amargura nos dias vindouros
um suicida eufórico cães ledos correndo
pela areia fora em saltos
luminosos com o seu pêlo negro

as mãos doadas inoculando o doce
no coração amargo levado pelo olhar

ao redor tudo é aquoso
do céu ao rio e ao teu rosto
um tempo líquido que nos enleva
este e já nenhuma falua nos torna
até belém    a mentira da inocência
já não encontra morada
na boca           que fazemos aqui desenraizados
quanta terra há a percorrer

erigimos uma casa na solidão aguardando
uma visita e ninguém se aproxima destas águas