Tempo, corpo e linguagem: o primeiro livro de María Sánchez.

Cuaderno de Campo
María Sánchez
La Bella Varsovia (2017)

Antes de começar, entro na página da Enfermaria 6 e vejo a biografia que têm da María Mercrominia, agora María Sánchez. Ali, bem na última frase: “tenta terminar o seu primeiro livro”. Já não tenta, esta é a notícia que lhes venho dar.

Este texto não pretende ser uma crítica. Não seria honesto fazer-me de crítico para escrever uma resenha de uma amiga. O que pretendo é lançar algumas ideias sobre este livro, que fique por escrito a minha opinião e algumas experiências que vivi com esses poemas.

Quando vi por primeira vez o título, Cuaderno de campo (La Bella Varsovia, 2017), inevitavelmente pensei nas aulas de laboratório de biologia que tínhamos no secundário e no reiterado conselho do professor: “sejam objetivos”. Três anos sem entender a diferença entre ser objetivo e contar o que aconteceu. María também não sabe da dita diferença, mas no seu caso é uma virtude. Certamente, isso é o que faz dela uma voz diferenciada da jovem poesia espanhola, apesar do vínculo que mantem com outros poetas da sua geração. Não é uma herdeira fiel da Alt Lit americana, sem nada contra (até muito a favor), composta por escritores/poetas como Tao Lin ou Dorothey Lasky. Não procura contar do desconsolado tempo que lhe tocou viver ou da malograda esperança desse futuro que parecia mais ou menos resolvido.  Nem sei se procura dizer algo, pelo menos algo concreto. Na linha de outros poetas sumamente conhecidos da sua geografia linguística como Antonio Gamoneda, Amalia Iglesias ou Roberto Juarroz, (talvez em português pudéssemos falar de Al Berto ou Maria Gabriela Llansol) a sua via de comunicação é o resultado da acumulação de sons e imagens que nos levam a ser habitados por um sentimento. Essa é a sua estratégia: seduzir-nos pouco a pouco – através da enumeração constante de um universo semântico muito particular e da criação de imagens sucessivas, algumas delas inteligíveis – até que de repente nos encontramos no centro da armadilha e não há volta atrás. Isso não significa que a sua poesia não seja intimista, que o é, apenas que o íntimo neste caso não é uma situação concreta, é uma forma de sentir.

Os poemas deste Cuaderno de campo já me acompanham há alguns anos nos diferentes workshops de introdução a poesia jovem que tenho feito em bibliotecas espanholas (traduzi também alguns deles para português para a Enfermaria 6). Nos diferentes grupos de leitura com que trabalhei, compostos geralmente por gente reformada que tem pouco contato com a poesia em geral e menos ainda com a mais atual, quando lemos os poemas de María Sánchez a reação é sempre a mesma. (Espero não estar a confundir, uma vez mais, ser objetivo com contar o que acontece.) Depois de ler alguns poemas de outros autores, onde o exercício da linguagem é menos evidente ou logrado, chego aos poemas da Maria. A diferença é logo notada, mas surpreende-me sempre como os poemas alcançam os participantes. E repetem-se palavras como “infância”, “família”, “casa”, “corpo”; que se juntam com emoções mais complexas como “desiludir quem nos quer”, “ a perda”, “a insegurança”, “o que nos conforma” para descreverem este universo linguístico que tem como cenário o campo.

Três são os temas principais que constituem este livro: tempo, corpo e linguagem. Três temas que se entrelaçam para falar uns dos outros.

O tempo, associado a família, atravessa todo o livro desde “primeira mancha” - título da primeira parte - até “última ferida” que fecha este conjunto de poemas. O tempo aqui como uma forma de construir uma narrativa, de quem tenta compreender desde o presente todos os gestos que conformam esse espaço da memória, da casa, da família:

“Com um enxerto podes fazer que a árvore e o fruto sejam diferentes; basta uma navalha e uma venda. Mas o braço do pai não manda na cabeça do filho. Guarda a tua dor e as tuas mãos. O meu avô usava a navalha. Eu vendava a nova carne. Não esqueças de chorar para que a ferida cicatrize.”

O segundo tema é o corpo. Esse corpo que acumula todas as memórias, que se enfrenta com o tempo. Corpo que se relaciona com o mundo e com o outro, um corpo que se interroga (também como mulher) e permite a ação:

“...sou incapaz de responder se me perguntam: menina, diga a região exata, concreta, única, menina, diga-me todos os nomes corretos de vasos e veias, gânglios e linfa, músculo e gordura, tipo de divisões e de células...mas menina, como é que não sabe? estamos a falar do seu próprio corpo
não, não e não
mas talvez possa dizer-lhe, senhor
enquanto olha atentamente esta parte de mim
esta parte de fenda e jejum
este sitio onde nidificaram todos os homens da minha vida”

E por fim a linguagem como a única ferramenta que tem o poeta para comunicar. A linguagem como forma de (re)construir o passado, a família, o corpo. É através da linguagem que se questiona o ato da escrita (“Prometer-me uma e outra vez/ nunca escrever em vão/um livro com as mesmas manchas”), a função do poema (“a sua voz cheia de ternura/ a sua/ berço ninho toca// uma forma de se aferrar) e também a obrigação ou necessidade de continuar:

“porque no fim se calam
as asas das borboletas, o irmão e as
          andorinhas
e é a minha vez de falar”