O Minotauro arranja um emprego
/...and as he sank below the crust of the visible world, into his dazzling kingdom, he understood that he had travelled a long way from the early days, that he still had far to go, and that, from now on, his life would be difficult and without forgiveness.
Steven Millhauser, “In the Kingdom of Harad IV”
O cerne da questão é que odeio estes homens, que se têm servido do meu tempo como se fosse deles, com as suas perguntas inúteis e impiedosas, que no fim servem apenas para que o seu poder sobre mim seja afirmado, e que me obrigam a dar ordens inúteis e impiedosas a outros, para que o nosso tempo seja controlado, a nossa energia destruída, a nossa criatividade drenada. E eu que até tinha conseguido escapar a isto, a esta vergonha, a esta miséria humana, sou eu também agora um instrumento disto. O tempo que de outro modo eu estaria a empregar em manter-me impecavelmente humano é de outro modo desperdiçado em tarefas que a cada dia me desumanizam e por isso me degradam.
Nos primeiros dias ainda conseguia parar e chegar-me à janela, agora não consigo suportar o mundo lá fora, tenho inveja da liberdade daqueles que enchem as ruas, daqueles que podem escapar por um minuto. Vivo ultimamente para esse grande dever: escapar por um minuto, porque é só nas poucas horas do dia em que estas funções que me foram conferidas param de me oprimir que estou vivo. Tudo o resto são horas mortas. Nem sequer inveja posso ter do meu chefe, muito menos aspirar a ser como ele, que nas reuniões com clientes e outros chefes tem o hábito de cobrir os genitais, o que, porque ele é alto, o força a curvar os ombros e levantar demasiado os joelhos, como os defesas nos jogos de futebol quando a equipa adversária pode reclamar uma falta ou como um flamingo.
Tudo nestes trabalho é uma arte de cobrança, a cobrança que é necessário exercer a cada erro ou mediocridade que é cometida. Este é um emprego que existe porque as pessoas cometem erros ou fazem algo medíocre e o meu trabalho é vigiar isso, corrigir os erros dos outros, dependendo de quem comete o erro, apontando a sua estupidez com um paternalismo de pendor neocolonialista ou, se o erro é cometido do outro lado da linha de produção, corrigindo o erro sem o fazer notar, o que inevitavelmente gera mais erros. Na verdade, e em última análise, tudo isto é um gigantesco erro, que vem do nosso gosto de mentirmos a nós próprios, enterrados como toupeiras numa rotina que nos anestesia na ilusão de que a vida dura tanto que pode ser completamente desperdiçada em tarefas estúpidas, na completa falta de uma causa que pudesse ser digna do nosso amor. Há dias em que tenho vontade de me trancar na casa de banho e vomitar. Há dias em que tenho vontade de me trancar na casa de banho e embalar-me com choro até ao juízo final. O que é que pode ser a minha felicidade a partir daqui? Não sentir tanta tristeza, aprender na minha vida de indivíduo, na minha vida de alguém que não é um agente ao serviço desta máquina suja, a não oprimir os outros, a deixá-los em paz para que eles me deixem em paz. A ternura a que aspiro agora é essa: deixar os outros em paz para que eles me deixem em paz. É difícil combater a monstruosidade das horas, não morrer de tédio. Reparei há alguns dias que se me posicionar num certo ângulo consigo sentir o coração a bater-me no ouvido, o que me torna num grande tambor vivo, uma máquina só feita de ritmo, mas o ritmo do meu corpo é tempo e é as exigências de merda destes homens brancos, vestidos de fato e gravata, sem sonhos, sem paixão, sem amor por nada que não seja o seu lucro, que, conjugado com a nossa pobreza, lhes permite consumir todo o calor do nosso corpo, até que, pela nossa vez, nós nos tornemos cada vez mais preparados para ser extintos.
Quando atravessei as portas deste gigantesco edifício cinzento pela primeira vez (na verdade é azul, mas só o consigo entender como cinzento), a primeira coisa que eles fizeram foi dar-me um cartão que lhes permite controlar a que horas entro e a que horas abandono o edifício. E foi aí que eu entendi: deixou de ser possível eu desaparecer para qualquer parte a qualquer hora do dia, e deixou de ser possível certas horas da minha vida serem só minhas, numa perspectiva utilitária: usadas por mim no ofício de estar vivo. E este contexto, não haja dúvidas sobre isso, é pensado para uma coisa, e para uma coisa apenas, para nos tornar todos iguais, para nos fazer a todos reagir de certa maneira. Normas e códigos são-nos repetidos diariamente, e protocolos de resposta devem ser decorados para cada situação. Existem guiões, formulários, processos, requerimentos que desencadeiam reacções que devem ser seguidas sempre de acordo com o mesmo padrão. Para que nada atrapalhe o ofício sagrado da grande máquina, ao qual é nosso dever sacrificarmo-nos.
A incapacidade de um asmático de respirar parece-se com as minhas horas de trabalho. A pouca humanidade de que disponho é uma coisa que demora uma incrível quantidade de horas a ser reunida e que se conserva com a precariedade de dentes-de-leão num dia muito vento. Ao fim do dia saio do comboio e corro para a livraria mais próxima e enrosco-me num dos bancos do primeiro andar com este caderno e esta caneta na mão porque preciso de sentir que algo da minha vida, da história do que em mim tem estado vivo, é resgatado por este gesto. Porque é muito pesado o extremo da necessidade que carrego e o meu trabalho é escrever isto, tentar conservar as breves iluminações de humanidade (no caminho para aqui, o rapaz na tasca de burritos, sentado ao balcão num banco alto, com os headphones azuis na cabeça como uma fita, a comer com fome o seu jantar que hoje acontece mais cedo, para onde irá ele a seguir? porquê tão cedo ou tão tarde?, ou os dois velhos bêbados à porta do bar, um deles a segurar o outro enquanto ele chorava) que fugazmente se acendem mesmo diante dos meus olhos. E eu devo dizer que agora preciso, mais do que nunca, que elas se acendam completamente diante dos meus olhos como as imagens no ecrã de cinema para o espectador que se senta na última fila, mesmo em frente ao ecrã. E não, nada disto é sobre luto, é antes sobre preservar quem sou, para que a estupidez em que diariamente tenho desperdiçado a minha vida não me destrua completamente, para que alguma das coisas que têm sido para mim sagradas não apodreçam completamente, não me tornem podre com o seu apodrecimento.
E houve mesmo uma altura em que acreditei que nada podia destruir o meu amor. Percebo agora que me deixei levar. Que o meu amor é constantemente ameaçado e que aquilo que o pode matar não é um golpe subitamente mas a banalidade de cada dia. Os dias despidos de qualquer possibilidade de beleza, conhecimento, encontro, ou descoberta. (Não encontro ninguém há meses, continuo a procurar e não há ninguém.) O frio e o medo são estas coisas e o trabalho da minha morte é o ofício porque eles vieram. Estes dias todos iguais que geram noites iguais umas às outras, que me fitam com as suas caras sem olhos através destas longas filas de secretárias e computadores que mesmo no verão só existem e só prosperam na escuridão de todos os invernos, de toda a falta de ternura, liberdade, ou calor. E podia ser que eu aceitasse que alguém me viesse dizer que nada disto é assim, que isto é apenas uma situação. Mas é isto ser apenas uma situação que permite que esta frase seja aceite, que esta maneira de viver sem sangue, sem amor, sem desejo, nesta perseguição tonta e vazia dos deuses do lucro e da velocidade (o mais importante de tudo é ser muito rápido, para produzir cada vez mais para gerar cada vez mais lucro, do qual, nós que o geramos, beneficiamos numa percentagem ao nível da esmola), seja confundida com a normalidade, com o que uma vida humana deve ser. Não há consolo nenhum para isto e não há nenhum outro perdão que não deixar esta guerra e este ódio crescer dentro de mim, até se tornar no meu jardim, alimentar-me deste total desprezo pela maneira como estou vivo aqui e agora, um desprezo que me inclui, uma vez que eu não tive outra escolha que não aceitar isto, trazer este contexto para cada dia da minha vida, que a partir daqui será cada vez mais difícil e cada vez mais imperdoável.
Oxford, 7 de Novembro de 2015