Quatro Poemas de Tomaz Amorim
/Contemporâneas
essa sensação de ter chegado tarde
na manhã logo depois da festa
algum perfume ainda na maçaneta
cinza quente na churrasqueira
um grito que ainda acaricia a vidraça
mas ninguém à vista, um silêncio contraditório
com a abundância alegre da louça usada
com as pegadas de cinco dedos no quintal
as marcas de dois e quatro lábios nos vidros
a confusão de ter encontrado o lugar certo na data errada
(o perigo dos botões de latão na sala blindada de comando,
sempre na iminência)
mas uma moça de cabelo curto canta em dialeto inadivinhável
de vogais entoadas com tanta graça e duração perfeitas
alguém que marca o ritmo estranho nas palmas, nos estalos da língua
que compasso derivado do começo ou do fim do mundo é esse?
meninas com os braços cruzados em estrelas
dançando com seus cabelos infinitos
quem sabe que horas são, qual será o século
em que essa gente vive tão despreocupada
Não,
é agora, sempre terá talvez sido
uma entonação, uma expressão modesta
que interrompe
sem tempo para lamentar ou ansiar
ela canta agora e só são simultâneas as lágrimas
que tamborilam no meu colo
só são contemporâneas as palmas e os beijos que estralam juntos
embaraçados nesse tempo misterioso dessa brisa e dessa voz
Este abismo
Que me olha e
é todo pupila, ciclo-
pe cego
Onde caio, des-
norteado, desorientado
sudoeste
Um cair claro-es-
curo, um cair nada-
ndo, planado
Um deserto aé-
reo, vida em êx-
odo, em éter
E as diferenças, a des-
igualdade aerodinâmica
daqueles que caem
De queixo baixo e rabo
empinado desço mais rápido
me convém?
Se rolo olhos para o alto se
concentra inconfundível
o pontinho iluminado
Queda vazia e pro-
messa de profundidade
inda que de impacto
Salto em retrolem-
brança, até ser menor
que o reflexo na retina
Caio para cima, des-
abando para os céus, ad-
vindo de baixo.
Lilith
Lilith, você é uma borboleta
e eu sou um tiranossauro rex
de braços pequenos e pernas musculosas
eu choramingo, rouco
suas asas de cetim vibram
desfiam e depois se repenteiam
te digo: estou sozinho, Lilith,
ninguém é um repouso para mim
as vozes embaixo da água ficam caladas
de vergonha
o caranguejo excitado gargalha
e sua carapaça quase trinca
no céu gira uma roleta vermelha e branca com numerozinhos pretos
o sol quica nuclear de espaço em espaço
ouvimos daqui de baixo
pinga, o flamejar sacoleja
as sombras se embebedam
depois se vê novamente
quem terá ganho esta rodada?
certamente não eu, Lilith,
eu apenas arranho a terra com as garras traseiras
corro desajeitado atrás de gazelas
acho bonito o jeito que você voa
tão diferente daqui, estranho pensar que
um de nós não seja um videogame ou um anjo
eu não ouso te pedir porque já transbordei em minha vergonha
mas que fique registrado
se eu fosse honesto diria, uma noite
minha nuca retangular encostada no chão
você pousaria no meu olho esquerdo
e eu fecharia os olhos
pronto.
birds flying high
discos vinis de diamantes
fagulhas de agulhas faiscando - sim - raspando
e arando em translação harmônica
ondas num meio isotrópico sem ar
éter licoroso denso aromático
galáxias e seus respiros pantanosos
bosques ofegantes foguetes iluminados
a cabeça a ponta menor da estrela pentatônica
caminho batido de terra amarrotada
tubarões antepassados afiados em nossos caninos
anteriores às árvores respiradoras às caminhadas bípedes
e melancólicas nas praias cinzas bretãs
não - pés cheios de membranas
mãos cheias de dedos cheias de dúzias de unhas sujas
conchas inchadas de fetos frescos adormecidos
estradas artérias picadas vias lácteas
senderos luminosos
girar delicado de pulsos
do quadril
voz ampla entregando quem já foi de volta um pouco até aqui
a declinação lenta do ombro sob a cabeça
da língua naja sentada amparada sobre o plexo
braços longos línguas largas sibilamento
ninhos nos cabelos ninhos nos tóraxes nas axilas
um tabuleiro preto e branco de xadrez
um 360º rabiscando chão num decolar de calcanhares
seu nariz entre meus dedos médio e anelar
seus olhos repousando em digitais
- touch my mouth with your hands
ombros não cabides de camisas mas poleiros de araras
um moicano colorido de araras
um rabo de pavão capa heróica arco-íris prismática
araras pousadas nos meus ombros poleiros
cada toque não mais que magnetismo
pontas eletrosféricas esferográficas flutuantes
cumes pirâmides aspirando-se invertidas
fileiras de Cleópatras energia de dez Cleópatras
faiscante céu multidimensional azul
cachoeira de onde se derrama aqui agora
sobre nós céu azul cavaleiros mongóis sob o céu azul
bicos curvos de carcarás nos céus azuis
engatinhamento de bebê balbuciando
notas agudas da visão concentrada do mundo
jorro de galáxias escorrimento de líquen nos caules vivos
um calor uterino - sim - um cheiro doméstico
- birds flying high you know how I feel