Brasil, um dos teus grandes poetas morreu
/30 de Agosto de 2018
“O Wlademir morreu esta tarde” foi o que o amigo Thadeu me disse há horas atrás. Wlademir Dias-Pino (Rio de Janeiro, 1927), um dos poetas e artistas visuais brasileiros mais interessantes do século XX e o fundador do Poema/processo, morreu esta tarde. A par de outras ideias, como a indigenista Universidade da Selva, Dias-Pino deixa por acabar a mais ambiciosa, a da Enciclopédia Visual, uma obra-arquivo composta por mais de 100 mil imagens [1].
O seu trabalho, que influenciou incontáveis poetas e artistas latino-americanos, chegou ao grande público em 2016, com a exposição “O Poema Infinito”, no Museu de Arte do Rio (MAR). Mas não recebeu ainda o reconhecimento que merece, no círculo académico ou literário, por uma razão fundamental: é difícil, e a dificuldade assenta em dois momentos: abandonar, de modo estratégico, todos os passos da leitura tradicional, limitada dentro e a partir do entendimento exclusivamente logocêntrico da comunicação, e entrar num espaço (que, para a maioria dos leitores, será um espaço) de desconforto.
Quero fazer uma arte móvel, mas principalmente para o músculo do homem. Uma arte que tenha rigor. Mas de uma geometria do acrobático. O desencadeamento do lúdico, mas obedecendo uma ordem biológica. Uma expressão corporal, mas sem representação. Assim é que ao correr dentro do labirinto branco, o homem se sacode interiormente (já independente da “obra de arte”), com os músculos em sintonia com a respiração. Uma arte olfativa, mas, principalmente, respiratória. (Dias-Pino apud Silveira, 2008: 179)
O projeto revolucionário de Dias-Pino que, com apenas 13 anos, publica o seu primeiro livro-poema A Fome dos Lados (1940) — um bloco de anotações que deve ser aberto na vertical —, marca pela novidade e escapa às fórmulas da conhecida Geração de 45. Apesar de repetir os passos estruturais d’A Fome dos Lados, A Máquina que ri, publicado no ano imediatamente a seguir, abre na horizontal e, segundo Sergio Dalate, a montagem das formas no “sentido em direção à morte, [à] imagem de um corpo pênsil e [à] presença do morto” (1997: 86) convida à leitura conjunta dos dois livros-poema. Ressalta ainda o facto de, em ambos os livros, a cor branca aumentar à medida que o texto progride; antecipando, assim, o que viria a ser um projeto de vida e, para muitos, movimento de vanguarda: a importância do aspeto físico da palavra e a sua desintegração no mundo fragmentado.
Nenhum dos dois, A Fome dos Lados e A Máquina que ri, recebeu a atenção da crítica ou foi disponibilizado até 1997 (com a análise desenvolvida e citada de Dalate); apesar de um e outro estarem na base d’A Ave (1953-56), Solida (3 versões, 1956, 1962, 1968 c/ Álvaro de Sá), Numéricos (1961/1986) ou dos poemas reunidos em Processo: Linguagem e Comunicação (1971), fundamentais no contexto da poesia e artes visuais brasileiras dos anos 70. Antecedem também, de modo indireto, o intensivismo, cujo manifesto, publicado por Dias-Pino em 1951 no Sarã, e Os Corcundas (1954), livro de poesia, manifestam um desinteresse geral pela dimensão narrativa da literatura.
A fisicalidade da palavra, explorada de modo indiscutível por concretos e neoconcretos, atinge no Poema/processo um limite: a recusa do alfabeto (sistema de comunicação) com vista à realfabetização visual do poema.
[O poema/processo] não é uma mera ou simples continuação do concretismo: o poema/processo é uma continuidade radical, implicando desdobramentos semiológicos próprios, de uma das direções da poesia concreta. (Moacy Cirne apud Cruz 2007 [1977]: s/p)
Os novos códigos comunicativos constroem-se a partir da sucessão de processos informacionais variados e o caráter construtivo do processo (feitura concreta do poema) nega, ao apostar na plurisignificância do objeto, a existência de um objeto acabado — sequer acabável.
O leitor recria, apropria-se e re-elabora o processo original de criação do autor. Autor e co-autor (reconhecido não por acaso pela teoria literária neste período) completam-se, porque, se por um lado a natureza polissémica do primeiro garante mais de uma interpretação, por outro a subjetividade do segundo atesta que nenhuma leitura (ainda que feita pelo mesmo indivíduo ou conjunto subjetivo) será igual ou sequer similar à anterior.
Não é a ideia, mas a aplicação prática da ideia que me parece sugestiva.
Solida, livro-poema de Wlademir Dias-Pino, que começou por ser, em 1956, parte da I Exposição Nacional de Arte Concreta no Museu de Arte Moderna de São Paulo, foi apresentada em 48 folhas de cartão dispostas numa caixa [2]: no primeiro cartão, Dias-Pino dispõe a palavra “sólida” (SOLIDA) e, a partir do acréscimo ou da elisão, as várias versões, legíveis ou ilegíveis, de “sólida” (SOLIDÃO/SÓ/LIDA ou SOL). No segundo cartão, lê-se a recodificação das letras no que parecem ser pontos. São os pontos e o acesso ao primeiro cartão que permitem a leitura das cinco séries de 9 poemas visuais que recodificam, por sua vez, as palavras em elementos gráficos. O mesmo raciocínio aplica-se às cinco séries: o primeiro cartão é a chave lexical do poema.
A leitura de Solida assemelha-se à leitura cifrada de uma equação organizada. A operação combinatória dos signos, funcionante ao longo das nove séries, abre espaço, além disso, para a interpretação plástica ou material da estrutura. Por outras palavras: o que é denso e firme torna-se menos consistente. Solida liquidifica-se.
A deterioração, derrame ou destruição da matéria semiótica comporta grande parte dos intentos do Poema/processo, no contexto do qual os vários experimentos, diversificados e polifónicos, seguiram coerentemente a ideia primeira de Dias-Pino [3].
Não pode ser, além do mais, ignorada a colaboração de Wlademir Dias-Pino com o Grupo Noigandres, pois, ao olhar os poemas integrados no conjunto dos objetos exibidos na Exposição Nacional de Arte Concreta de 1956 — onde participaram apenas seis poetas (Dias-Pino, Ferreira Gullar, Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari e Ronaldo Azeredo) —, concluo que o contato de Dias-Pino com os Irmãos Campos e Décio Pignatari foi essencial para que o primeiro chegasse à premissa: a arbitrariedade do código alfabético, a que escraviza, deve ser destruída com base na invenção ou invenções individuais do poeta [4].
A Ave, livro-poema de Wlademir Dias-Pino e provavelmente o texto mais bem conseguido do Poema/processo, está na base da evolução perceptiva do movimento. Mais original e desenvolvido a nível estético do que Solida ou Numéricos [5], A Ave tanto introduz como encerra novos caminhos formulados a partir do processamento do vocabulário gráfico.
O título não consta da capa, mas é sugerido a partir de três formas triangulares que adoptam uma estética similar à da pintura rupestre (possivelmente ligada à ideia de cuiabania) [6]. E resume, na verdade, o jogo interativo proposto pelo livro-poema a partir de três níveis de interpretação. Ou seja: cada uma das 3 letras de AVE corresponde a 3 formas triangulares em separado e cada um dos pontos do triângulo corresponde, por sua vez, a cada uma das três letras de AVE. Os níveis interno e externo predizem as semelhanças entre o exercício de leitura e o desenho imaginário, em forma de constelação, do voo das aves.
Folheada a página de rosto, o leitor cruza-se com uma série de palavras aparentemente soltas que, depois de conectadas, formam “A AVE VOA DEnTRO de sua COr”. As linhas, muito subtis, que conectam as palavras dispersas, tornam-se visíveis a partir da transparência do próprio papel e da qualidade da impressão do livro (em que o contacto da tinta com a página anterior reforça a mancha gráfica). Não é também acaso: a mesma técnica seria depois usada por Augusto de Campos em poemas como, por exemplo, “Greve” (1961). E por esta mesma razão A Ave ou “Greve”, cujas versões materiais são hoje quase inacessíveis — sobretudo pela qualidade e especificidade do papel da época —, prestam-se a versões digitais ou online.
O desenho semiótico assemelha-se a um labirinto funcional, em que o estranhamento inicial — hesitar, por momentos, por que ordem optar de modo a ler “A AVE VOA dEnTRO de sua Cor” — não impede a compreensão do texto. A relação estabelecida com o texto é, além do mais, de um dinamismo profundo: o olhar move-se para desenhar, ou talvez se cruzem olhar e dedo indicador (pois ver exige agora o toque) e adivinhem, depois de cruzados, a página seguinte. O desenho, por fim; ou o voo pleno da ave.
Poucas estratégias foram, na verdade, tão bem sucedidas em incluir o leitor no processo da montagem do esqueleto do poema como os desenhos-constelação de Wlademir Dias-Pino. A Ave não é, de resto, um livro-poema alógico, sequer confuso; muito pelo contrário. A Ave reconhece o poder, a centralidade e a necessidade do alfabeto e cria um ou mais alfabetos para explicar as engrenagens do primeiro [7].
O projeto arrojado de Dias-Pino antecipa a conclusão a que os poetas neoconcretos chegariam anos mais tarde: todo o esforço para escapar da palavra — sem entender que a palavra motiva o esforço — é vão. Estimula, além disso, a par dos acontecimentos de vanguarda (Poesia Concreta — Neoconcretismo — Poema/processo), o atrevimento visual e performático das gerações literárias seguintes.
Ao olhar, em 2018, a herança artístico-literária de Dias-Pino, uma das mais subversivas e agitadoras da história da poesia do Brasil, ainda sem obra bibliográfica que lhe faça justiça, regresso às palavras que um dia ele escreveu sobre um fundo amarelado para despedir-me: "A liberdade é sempre experimental". E, por momentos, estendo-as: "A liberdade é sempre experimental e tem um preço". Mas só por momentos.
[1] Desde 1974, Dias-Pino publicou 6 volumes (A Marca e o Logotipo c/ João Felício dos Santos, A Lisa Escolha do Carinho, Escritas Arcaicas, Naquele Flutuar das Escritas Caligramas, Pré História: Uma Leitura Projetada, Febres do Capricho) de 1001 volumes totais da chamada Enciclopédia Visual. Disponível aqui: http://www.enciclopediavisual.com/poemas.detalhes.php?secao=1&subsecao=27.
[2] A apresentação de Solida merece esclarecimento. Augusto de Campos (apud Eduardo Kac 2004: 233) menciona um folheto desdobrável de 1957. A Enciclopédia Visual (CNPq) refere-se à caixa como a segunda versão do poema e a um envelope, feito em colaboração com Álvaro de Sá e publicado na revista Ponto 2, como a terceira e última. O propósito desta última, ao contrário das duas primeiras, é aporético. Não há um fim para os recortes dispostos dentro do envelope.
[3] 12x9, feito por Álvaro de Sá em 1967, ou, do mesmo ano, A Corda de Neide Sá são, respetivamente, exemplos centrais de comunicação visual e performática a partir do processo de desalfabetização. Os exercícios visuais de José de Arimathea Soares Carvalho, como o Poema/processo “Fome” (1970), são igualmente representativos da busca obsessiva de novas formas de comunicação.
[4] Vide Guilherme Freitas, “Wlademir Dias-Pino contra o alfabeto”, O Globo, 19.11.11: “— Eu sou contra o alfabeto [...] O código alfabético é uma arbitrariedade. Se ele estabelece que a letra “O” é redonda, eu não posso usar uma cruz no lugar dela. O código se tornou um modelo para todo raciocínio humano, sua carga arbitrária é uma escravidão. Assim como cada povo inventa sua língua, compete a cada poeta, no meu ideal, inaugurar uma escrita própria”. Disponível aqui: https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/wlademir-dias-pino-contra-alfabeto-417323.html.
[5] Realizado entre 1960 e 1961 e publicado apenas em 1986, Numéricos partilha semelhanças, ao esperar do leitor a decifração de um código, com A Ave e Solida. A edição, singular e mais conceptual do que as duas anteriores, é apresentada ao leitor sob a forma de um quadrado. A capa, onde não consta autor ou título, inclui um quadrado azul sobre um fundo branco. Este recorte de céu antecede 68 páginas sem numeração, das quais uma parte considerável está em branco. As restantes incluem composições textuais e numéricas, algumas observações e uma abertura circular. É, sem dúvida, o mais difícil e misterioso dos três livros-poema e, por isso, a leitura interpretativa de Numéricos parece exigir mais do leitor que, envolto em dificuldade e estranhamento, aceitar o desafio da decifração.
[6] A respeito deste duplo sentimento de cidadania — ser brasileiro e cuiabano —, Silva Freire, Wlademir Dias-Pino e Célio Cunha escrevem o “Manifesto Mosaico Cuiabano” (Diário de Mato Grosso, Suplemento nº 3, fev. 1977); precedido por vários poemas de Freire sobre o mesmo conceito e pelos dois primeiros volumes da Trilogia Cuiabana de Dias-Pino.
[7] A criação autónoma de alfabetos exclusivamente visuais resulta na publicação de livros posteriores como, a título de exemplo, Latências (projeções de linhas e planos, s/d) ou o Humor da Linha (ilustrações em serigrafia publicadas em 1962). A propósito do primeiro, interessante reparar que, até no contexto de uma linguagem puramente visual, o autor parte da desconstrução de figuras geométricas, como o cubo, para chegar — sob a forma, uma vez mais, de um processo — a figuras abstratas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Cruz, Gutemberg. “Do Poema Processo ao Experimentalismo na Linguagem”, in Utsanga, n. 12, 2017 [1977].
Dalate, S. A Escritura do Silêncio: Uma Poética do Olhar em Wlademir Dias Pino. FCLAS, Universidade Estadual de São Paulo, 1997.
Dias-Pino, Wlademir. A Ave. Enciclopédia Cultural, 1953-56. Disponível aqui: http://www.enciclopediavisual.com/poemas.detalhes.php?secao=1&subsecao=1&conteudo=8.
_________________. Solida (2ª versão). Enciclopédia Cultural, 1962. Disponível aqui: http://www.enciclopediavisual.com/poemas.detalhes.php?secao=1&subsecao=1&conteudo=24.
Kac, Eduardo. Luz e Letra: Ensaios de Arte, Literatura e Comunicação. Contra Capa, 2004.
Silveira, Paulo. A Página Violada. Da Ternura à Injúria na Construção do Livro de Artista. UFRGS, 2008.