a felicidade efémera de antífon, pintor de vasos ateniense, ca. 490 a.C.
/a partir de C. P. Cavafy
pistachos e solidão
enchem a oficina do chão ao tecto
durante as noites de outono
lá fora a chuva que cai a cântaros
dá cabo dos nervos e é
uma forma de medir o tempo
humilde no escuro como uma romã
e escuridão é o que atravessa o vermelho
das sementes derrubadas sobre a mesa
e alguma espécie de má sorte
tem-me acordado toda a noite
rumino lentamente tudo o que me preocupa
inutilidades banais disputas com outras artesãos
todas as parvoíces que não me deixam
fazer o meu trabalho em paz
e conto as minhas pequenas alegrias
elas deixam-me sempre perplexo
as suas sementes semeio-as no escuro
elas contêm a noite e vão
um dia talvez chegar à primavera
que chegará muito depois
de eu ter deixado
os tigres caminharem sobre o meu peito
sem razão
também no que parece ser escuridão
um negro absurdo e absoluto
farei iluminar a sua figura que agora me foge
ao centro sentado absorto no seu trabalho
o seu nome e o meu hão-de desaparecer
e esse esquecimento
outra forma de alegria
será o selo do nosso segredo
mas ele será ainda mais esquecido do que eu
porque é ainda mais efémero o seu trabalho
os meus traços sobre a superfície
farão o seu rosto a princípio parecer
mais indefinido
e de mim será dito que preferi sempre
pintar nos vasos
cenas com rapazes aristocráticos atenienses
e batalhas míticas para
serem vistas e adoradas em banquetes
por ainda mais rapazes
aristocráticos atenienses
cenas onde se pode observar
os mais respeitáveis heróis gregos
os mais sangrentos mitos da grécia
os arqueólogos notarão
que são poucas as mulheres
que surgem nos vasos onde se pode reconhecer
a minha mão, a mão por que será reconhecido o meu nome
que não será já o meu nome
mas o nome que outros me terão dado
em virtude de serem reconhecíveis os meus traços
os meus padrões, mesmo na solidão de mínimos cacos
nas imagens que ficarão perdidas para sempre
elaborados pormenores deixarão
emergir o meu verdadeiro nome
e que se entenda que foi meu o meu trabalho
que este trabalho
por certos pormenores se fez famoso
e não há nada de errado
em um artesão capaz querer viver
em paz
da sua arte
com uma certa dignidade
mas não nesta noite
e não para o trabalho deste vaso
que será descoberto muito longe de onde
se passou esta cena e esta cena devia
ela própria ser efémera
nem tu pensarás de imediato
em páginas saídas da história
em gente como dario ou xerxes ou nos anos
em que os malditos persas
atravessaram o helesponto
para nos darem o inferno em atenas
este jovem que não é nem aristocrata
nem efebo mítico nem terá nome
ficará assim pacientemente sentado
diante do capacete que foi o seu trabalho
esculpir de uma só peça
atento, quase imóvel, quase vencendo o tempo
à velocidade de uma corrida mortal
a sua mão alonga os gestos
que terminarão o trabalho que não é o meu
esta intenção opressiva esculpida no bronze
a força desta leveza quase luz fazendo inchar o peito
até ao transporte final das imagens através da escuridão
transformadas em incêndio e pelo fogo visíveis
antes queria não ter sabido nada disto
queria tê-lo deixado dormir quieto na oficina
entre os pistachos e as romãs
aconteceu então
embora eu não o tivesse entendido
que foi minha uma coisa breve do mundo
de repente um rosto reconhecido
e esta outra arte mais difícil de dominar
muito dificilmente conquistada
aquilo que aqui se pode ver agora
uma efémera lei do caos, indecifrada
Tatiana Faia, Oxford
30 de Setembro de 2019