Vox propria (Um homem e um pássaro de barro)
/Estava à espera deste momento sabes
há anos ou já há tanto tempo que o tempo
tem ângulos ou um calafrio ou morto
há anos levava tempo demais
posso tratar-te por tu deverei?
tempo demais para te fazer ver aqui fingido
aqui bem fingido como a minha letra que te afaga
e te ilude e te deforma e te escrutina
tinhas ou tens porque para quem escreve é o mesmo
já muito tempo e pegas numa coisa de barro
e finges que é um pássaro ou ao contrário
quem sabe agora que estás escrito bem podiam
ser todas as aves do mundo ou um deus
que decidiu descarnar num voo de elefante
e rebentavas a tarde com o cheiro de um pássaro
de barro ou o seu som tão cheio de água
como outra coisa qualquer tinhas barros nos lábios
e um pássaro que se diria mecânico se voz tivesse
e mesmo junto por cima por dentro ou ao lado
centenas milhares ou mesmo duas ou uma
criança parecia que ouvia um pássaro de barro
e olhava e contava a mesma história dos pais
tenho de ter aquilo por aquilo e a tua mulher
porque tens sempre uma mulher que ainda não morreu
não percebes estás aqui fechado estás aqui no barro
fingido em qualquer recuo da rua em qualquer criança
que te crava o olhar com a mesma força
com a mesma força com que forjaste o teu banco
da tua mulher que puseste junto ao parque no infinito
da queda como se parasses todos os momentos
todos os momentos do barro numa ave entre crianças
entre berros entre birras e as cultivasses com o seu voo
que as aves o seu canto há muito tempo
seriam anos ou dias ou segundos ou o mundo
já há muito tempo eram barro cozido
domesticado reduzido aos teus lábios que o sopravam.
(Olivier Messiaen, Livre d'orgue: No. 4, Chants d'oiseaux)