O DIABO*

“Foi contigo que aprendi

a cidade” – Eduardo Pitta

  “com a tinta que o inferno lhe deu !”

- Théodore Fraenckel

Foi contigo que na divisão do real conheci o ódio extremo.

Levaste-me ao mais intenso negro que em mim existia existe

ao oceano duplo de duas cores e duas inversões

ao lado que julgava não existir mas existe - essa

mancha onde toda a luz se perde do bem.

Levaste-me ao extremo sudoeste

a esse lugar onde o tempo não existe

ou se existe corre a passo lento de caracol

um caracol que desce na corda fina da lágrima

e me enrola e me aperta o pescoço.

 

Foste a ponta do meu sufoco.

Nele a águia num céu riscado de negro

chicoteava-me a película dos olhos

a pele sensível do meu eu interior frágil confuso

sem que pudesse pressentir a pedra que sobre mim se formava

uma pedra enorme que sobrevoava

cascalhos blocos contentores de ruínas

(era um ventre ensangue de espírito ferido).

Uma pedra enorme sobrevoava

a mais dura

a mais inesperada dura pedra

sobre mim.

E dentro da mancha negra que foi esse meu extremo

que por vezes era tingida de azul

quanto mais mentias mais crescia o grande bloco

que na hora da pétala impreparado caiu sobre mim

esmagando-me nessa mesma hora.

 

Sozinho sob o bloco nunca mais voltei a ser quem era.

E quem era eu antes de ser quem sou? Agradeço-te

disfarçado homem por me teres levado sem querer ao

limite do meu próprio sangue pois só assim

 pude chegar Aqui onde me esperavam.

Fizeste-me regressar pela força da minha força

ao centro imóvel daquilo que sou. À aceitação plena de

todos os meus erros incluindo o ter-te conhecido.

 

Se outra pedra vier

uma que me caia sem aviso com maior peso e estrondo

que me faça da minha adormecia alma a mais espalmada de todas

agradecer-te-ei esquecida a dor pois terei chegado à fina folha.

À folha onde poderei finalmente escrever “Sei quem sou!”

e escrita poderei então rasga-la

entrega-la              

liberto         

   ao ar           da terra

para             

   nunca                mais        

 regressar         a esta

                           forma      imperfeita

                                                                

  que             me                prende. 



*último poema de “Lodo”.

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Vítor Teves - “O Diabo”, (pormenor), 2007.