"COLÓQUIO, um crítico fala..." e outros poemas

COLÓQUIO, um crítico fala…

 “Die Tempelsäulen stehn

Verlassen in Tagen der Not”

           - Friedrich Höderlin

“Hoje não houve cardume no menu”

- Raul Milhafre

                              I

“Antes demais queria agradecer o convite
que me foi endereçado para estar aqui
neste nobre evento. Eu não preparei um
devido texto porque não tive tempo ou
melhor tempo até tive há muitos anos atrás
mas agora estão a ver sou muito requisitado
aqui e ali chamam-me para picar o ponto
e eu com esse rosto bonito e esses meus
trejeitos de diva dos anos 80 não posso e
nem consigo dizer que não. E lá vou eu
tomar um copo e outro e outro às vezes
se tiver sorte ainda engato o organizador
do evento um sobre poesia e alguma coisa.

                                   II

Mas é com prazer que venho aqui picar o
ponto sem texto preparado e sem muito
para dizer. Sendo assim vou dar início à
minha salada russa que como toda a gente
sabe começa na literatura alemã e depois
passa para Baudelaire Verlaine e Rimbaud.
E como tenho vinte minutos para falar vou
buscar o Celan as cuecas da minha tia josefina
a imagem de um homem nu uma pintura de
Ticiano e outra de Jasper Turner - ou será
William? Não importa porque nada importa
o que importa é falar indiscriminadamente
durante estes vinte minutos afinal ninguém
me paga e eu estou com pressa tenho mais
em que pensar (hum… aquele menino ali ao
fundo da sala loiro e de ombros largos ficava
muito bem lá no sofá). Falta-me muito para a
reforma e tenho de dar a cara e com sorte o cu.

                                       III

Pois dizia eu vim como sabem picar o ponto
apenas isso e o importante é que utilize muitas
vezes a palavra imagem e que diga pensar muitas
muitas vezes. Se tiver sorte usarei da retórica
mais cara muitos advérbios e interjeições coisas
que possam dar grandeza a esta minha PRESENÇA!
E se não se importarem enquanto cá estou
vou escrevendo mais um telegrama a mandar
aos messias e novos super-heróis da crítica que na
realidade são só o meu espelho de crítico decadente.
Pois sim a imagem o que mais direi da imagem?

                                          IV

A criação o vento das imagens é preciso pensar
Hodërlin fazia-o em alemão Goethe dizia azul
e vermelho Rimbaud tinha dois pés e o pobre
Baudelaire nunca ficava sentado sem absinto.
A imagem pensemos a imagem e na imagem é
preciso dizer que a imagem lembra a imagem
e a criação da imagem. O pensamento é uma
coisa que precisamos pensar sim pensar é preciso
expandir a repetição e a exaustão da repetição
da imagem da imagem da imagem. Tão a ver?
Pronto esgotei os meus vinte minutos e agora
vamos comer os bolinhos e tentar sorrir muito
para disfarçar a imagem ridícula que acabei de
fazer. Não importa eu piquei o ponto e está picado!”                                         

Fechada a matraca todo o colóquio respirou de alívio.

  O VÃO

Entre a leitura de um poema meu
(que muitos negam que o seja) e o
encontro com o rosto que escreve

                      

existe a desilusão do confronto.
Do louco e depravado corpo
Do sedento de sangue e de farpas
só encontram um pequeno beija-flor
resistente ao vento da manhã.

 

A BAILARINA

 

A bailarina de serviço todas as vezes que
abria a boca para falar do seu curso superior
dizia muito pausadamente: é um curso muito giro!
A bailarina de serviço era a única bailarina
de toda a turma uma turma cheia de meninas e
de meninos apenas seis (cinco gays e um hétero -
o único rapaz bonito que valia a pena investir).
A bailarina de serviço era mesmo bailarina não
mera figura de estilo e dançava algures numa sala
de espetáculos muito conceituada. Não fixei a sala!
A bailarina de serviço era como todas as bailarinas
um espeto e o que lhe faltava em gordura tinha
em excesso de veneno verde como a fria cicuta.
A bailarina de serviço era como todas as más bailarinas
feia (não sei se isto é bem verdade) mas era feia
nariguda com uma cabeleira enorme feita peruca.
A bailarina de serviço estudava muito. Sabe o meu
Sonho foi sempre tirar História da Arte é tão giro!
A fartura da gadelha não ressoava grande inteligência.
A bailarina de serviço estudava e lia que se fartava
passava horas e horas a decorar nomes de artistas
datas termos eloquentes da crítica da arte e ficava
furiosa com a minha falta de interesse em decorar.
A bailarina de serviço decorava decorava e decorava
e a cada nota de exame que saía ficava furiosa
furiosa furiosa. Afinal como era possível que aquele
tipo que andara a ler poesia na véspera do exame
tirasse não só mais do que ela mas fosse a nota mais alta.
A bailarina de serviço hoje vagueia algures pela
cidade e tudo o que diz nas irrelevantes vernissages
é: Sabe eu tirei História da Arte é muito muito giro!

  

PRODÍGIO(S) DA POESIA

 

“o caixote aceita. O caixote digere.

O caixote aplaude//é vê-lo a bater

 palmas depois de repleto”

                - José Martins Garcia

 

Aos 5 anos via a Arca de Noé
e os tigres da Tanzânia
em 8 horas seguidas
tinha muita mama e pouco sono.
Pelos 10 escrevia poemas que rimavam
com papão cão e pião
tudo já era medo pelo e bico.
Aos 20 publicou o seu primeiro
livro
capa dura e impermeável.
Vendeu tudo
entre a livraria Almeida e a esquina do Toy. 
Hoje pelos 22 e meio promove leituras
de poesia às quintas-feiras
diz-se amante e poeta
mas tudo o que lhe importa
é rir para a fotografia
encher o balão
rimar cuzão com cagão
bater palmas.
É isso!
A poesia é para ele promoção
da sua cintura fina
e cabelo loiro. 

Saberá ele que não é no som
que se alcança o perdão
ou onde se escondem as epifanias? 

Eu adoro leituras de poesia
tão maravilhosas como uma ervilha
sobre um cubo de gelo.
E dizendo isso vomitou toda a sopinha de letras.

VOTO *

Ser esponja.
Basta a tinta, toda
a superfície da terra e

 um mar de largo tempo.

                                 01.02.20

                 [*Depois de “Voto” de Pedro da Silveira in Corografias (1985)]

DA SUA NATUREZA

O poeta é um círculo carnal
com espelhos interiores. No
seu núcleo traz a ideia viva
e permanente da sua morte. 

Gunther Forg - Untitled, 2008.jpg

Gunther Förg - Sem título, 2008.