três poemas de Michel Houellebecq no supermercado
/tradução de Inês Morão Dias a partir de, respectivamente, La poursuite du bonheur (1997), Le sens du combat (1996) e Renaissance (1999), reunidos no volume Poésie, Michel Houellebecq, Éditions J’AI LU (2010)
hipermercado - novembro
Para começar, tropecei num congelador.
Pus-me a chorar e tive um bocado de medo.
Alguém resmungou que eu estava a estragar o ambiente;
Para parecer normal, retomei o meu passo.
Suburbanos minados e de olhar brutal
Cruzavam-se lentamente ao pé das águas minerais.
Um rumor de circo e de semi-deboche
Subia das prateleiras. O meu passo ia torto.
Estatelei-me na secção dos queijos;
Havia duas velhinhas que levavam sardinhas.
A primeira vira-se e diz à vizinha:
“Que triste, um rapaz desta idade.”
E depois vi uns pés circunspectos e muito grandes;
Havia um vendedor que tomava medidas.
Muitos pareciam surpresos pelos meus sapatos novos;
Pela última vez, eu estava um bocado à margem.
(sem título)
Os insectos correm entre as pedras,
Prisioneiros das suas metamorfoses
Nós também somos prisioneiros
E em algumas noites a vida
Reduz-se a um desfile de coisas
Cuja presença inteira
Define o quadro das nossas falências
Fixa-lhes um limite, uma evolução e um sentido;
Como esse lava-louça que conheceu o teu primeiro casamento
E a tua separação,
Como esse urso de peluche que conheceu as tuas crises de raiva
E as tuas abdicações.
Os animais socializados definem-se por um certo número
de relações
Entre as quais os seus desejos nascem, desenvolvem-se,
tornam-se por vezes muito fortes
E morrem.
Eles morrem por vezes de repente,
Certas noites
Havia certos hábitos que constituíam a vida e
eis que já não há mais nada
O céu que parecia suportável torna-se de repente
extremamente negro
A dor que parecia aceitável torna-se de repente
lancinante
Já não há senão objectos, objectos no meio dos quais
estamos nós próprios imobilizados na espera,
Coisa entre as coisas,
Coisa mais frágil que as coisas
Pobrezinha coisa
Que ainda espera o amor
O amor, ou a metamorfose.
transposição, controle
A sociedade é aquilo que estabelece as diferenças
E os procedimentos de controle
No supermercado faço acto de presença,
Faço muito bem o meu papel.
Acuso as minhas diferenças,
Delimito as minhas exigências
E abro o maxilar,
Os meu dentes estão um bocado escuros.
O preço das coisas e dos seres define-se por um consenso transparente
Onde intervêm os dentes,
A pele e os órgãos,
A beleza que se esbate.
Certos produtos glicerinados
Podem constituir um factor de sobrestimação parcial;
Dizemos: “Você é bela”;
O terreno está minado.
O valor dos seres e das coisas é normalmente de uma precisão extrema
E quando dizemos: “Amo-te”
Estabelecemos uma crítica,
Uma aproximação quântica,
Escrevemos um poema.