Bónus para "um crítico" entediante
/"Até a poesia (não me refiro a uns versos miseráveis que
um vate presumido deu ao país, há poucos dias), hoje
sentida como a mais entediante das artes, começa a
circular como um bónus, um suplemento pra gente entediada".
- António Guerreiro, telegrama de sexta-feira 27.03.20
UM POETA FALA
Sempre estive mais preocupado
em ser melhor pessoa do que
melhor poeta ou outra coisa
qualquer. Sempre estive mais
preocupado em dizer o que
os outros fingem não ver.
Sempre estive mais preocupado
em terminar uma frase banal do
que suar por mais uma metáfora
de merda. Sempre estive mais
preocupado com a real vida do
que com a ausência de vida.
Sempre estive mais preocupado
em morrer e não voltar do que
voltar para dizer o mesmo que
agora e banalmente dito. Banal
como a flor que cai sobre as mãos
dos que ainda querem acreditar.
Sempre estive mais preocupado
em dizer a água transparente do
que a enigma mais elaborado.
Sempre estive mais preocupado
em ser esquecido do que lembrado.
MEIA LARANJA DE TÉDIO
Sobre a lareira um jasmim
pedia ao vento da janela
a vibração que não tinha.
Sem braços fechado na
caixinha do tédio só lhe
restava namorar a laranja
sobre a mesa – sossegada
tão segura da sua perfeita
cor pouco tinha a oferecer.
Se ao menos nessas chamas
do tédio pudesse tocar-lhe
ganharia meia dose para
aturar-se a si próprio por
mais uma longa temporada.
Exercício Cesaryniano
É preciso dizer Intervalo em vez de dizer Morte
é preciso dizer Outro em vez de dizer Umbigo
é preciso dizer Ternura em vez de dizer Febre
é preciso dizer Planeta em vez de dizer Mundo
É preciso dizer Oração em vez de dizer Tablet
é preciso dizer Hoje em vez de dizer Amanhã
é preciso dizer Silêncio em vez de dizer Rapidez
é preciso dizer Mãe em vez de dizer distância
GUSTON CRUCIFICADO EM PRAÇA PÚBLICA
O grupo ria muito.
Tinham entre si aquela facilidade de fingir
como quem vai às comprar num domingo à tarde.
A Gallery of the king fechara cedo.
Amarelo carmim azul cobalto
algum verde esmeralda sob o braço
era a altura de estender as telas e
escrever tudo aquilo que era suposto escrever.
Pintar quero eu dizer!
E pintava “macacos” figuras grotescas que saiam
do padrão aceite
afinal eram o grupo da expressão calculada
sem linha fechada sem contorno.
Com a galeria fechada Guston mudou de rumo
sentou-se no seu estúdio e começou a desenhar
freneticamente mas antes
prevendo as linhas do tempo futuro
como bom artista que era
desenhou a tabela das inimizades.
E os dias foram crescendo
Amigo D.F. X Amigo D.K. X Amigo E.F. X
Amigo G.S. X Amigo F.H. X Amigo F.F. X
E a cada dia que passava a lista crescia crescia
e nada o demovia a regressar aos
padrões do grupo
era teimoso tão teimoso como
um perfil geométrico de Piero della Francesca.
Meio ano depois
Guston tinha matado todos os Deuses outra vez.
um a seguir a outro e outro e outro e outro.
Ao fim desse ano
a fogueira foi armada na praça pública -
o castigo era agora inevitável.
Guston queimado despedaçara o seu coração
mas chegara ao cúmulo do seu destino certo:
o pódio da liberdade.
O LADO CERTO
É a capacidade de produzir discursos
(ou será Descursioós?) trôpegos,
precários, ricos em jogos telúricos, em
ERROS de bárbara transcrição; herdeiros
da educação mais elevada, feita na
sombra, no silêncio e na recusa, que
conseguem evitar o lado errado da vida!
Porque o excesso de razão cega loucamente
como se pode ler na cuidada gramática
do teu pulso que nada acrescenta à vida.
Julian Schnabel, 2020