CARTOLINA DOURADA

“rapaz, embrulha-os a todos

em cartolina dourada”

- Santos Barros (1977)

I

      Muito se tem dito e escrito, nas últimas semanas, sobre o derrubar de estátuas físicas no espaço público. Curioso é que em 2019, antes desta vaga de derrube de estátuas físicas, eu já tinha apontado para o mesmo gesto (alegórico) a ser feito sobre as altas estátuas da poesia (ver poema: Galileu). O que, tento em conta o citado DEUS, gerou alguma irritação na altura. “Mas quem se atreve a tal ato?”. Tudo não passava de uma alegoria que apontava para uma necessidade de alargarmos o nosso espectro de leituras, porque a poesia não é só o autor X e Y, ou melhor dizendo, a poesia não se resume a Fernando Pessoa e a Herberto Helder. Fui chamado de tudo e mais alguma coisa, inclusive de “populista”. Segundo eles eu queria “destruir” a poesia. Na era das Fake News quem chama a atenção para a verdade, para os snobismos, para as injustiças sociais, para os podres e indiferença das elites é facilmente carimbado com a palavra “populista”, “desestabilizador”. Aquele que veio para destruir a Poesia (they say), talvez seja aquele que a salva dos clichés que circulam de boca para boca. Dizer isso a alguém de estudou História, que valoriza a História, incluindo a literária, é uma verdadeira estupidez que nem se dão conta.

     Isto lembra-me uma pequena história ocorrida em tempos de licenciatura, um professor meu defendia que existia muita igualdade entre homens e mulheres artistas; ele insistia, estava convicto que tinha razão. Mas passados meses saíram novas estatísticas sobre as mulheres artistas nos espaços e instituições artísticas: a percentagem tinha subido de 1980 para 2015, mas estava muito aquém da igualdade. Naquela altura só me apeteceu pegar nos gráficos, estudo e esfregar na cara dele (quem nunca teve essa vontade que atire a primeira pedra; verão aqui não uma crítica ao politicamente correto, mas, sim, ao incentivo da violência, dirão eles. God Sake). Derrubar uma estátua, alegoricamente, pode ser derrubar “a idolatria à volta dessa estátua” e não propriamente a figura na estátua. Ficarmos apenas por Pessoa e Herberto, dois autores que leio e aprecio, é o mesmo que ficar por duas telas de Turner ou duas peças de Bach.

     Quando escrevi o poema, estava inconscientemente a pensar na viragem da Antiguidade para a Idade Média, quando as estátuas dos Deuses foram quebradas e destruídas pelos cristãos. Nessa altura, nenhum telejornal dramatizou a questão, nem vieram todos com o mesmo argumento: “Populismo”. Nem quando a Revolução Francesa derrubou outros tantos monumentos, o mesmo não foi feito. Estão a ver como estou a misturar tudo no mesmo saco? É o mesmo quando leio nos jornais, alguns até de letras. Mistura-se tudo: fascismo, populismo, cólera, racismo, feminismo, estátuas… querem todos sintetizar em quatro linhas aquilo que é uma questão complexa.

     Se sou a favor do derrube de estátuas? Alegoricamente, sim! Muitas vezes é preciso, para que a mudança se instale. Mudança essa que futuramente será derrubada por outros, faz parte. Sobre estátuas físicas tenho uma dupla opinião e é ambígua, aceito e condeno ao mesmo tempo. Uma estátua não apaga a História, nem reescreve a História, nisso estamos todos de acordo. Mas é necessário alterar o “paradigma” da representatividade no espaço público, se esses espaços são públicos eles devem representar toda a sociedade: negros, mulheres, homossexuais etc… Uma outra questão importante é ter em conta que a realidade dos EUA e de Portugal não é a mesma: não temos no jardim, que eu saiba, perto de nossa casa, figuras que são símbolo da repressão, racismo, tortura… Se eu fosse negro e houvesse uma esbelta estátua de um branco racista e nenhuma outra estátua que me representasse, eu acho que ficaria incomodado, sobretudo quando da estátua para a vivência quotidiano vai uma mínima distância.

     Cada estátua é uma estátua, cada caso um caso. Sobre Vieira, a minha reação foi repulsa, mas convém para verdade dos factos dizer a verdade: Vieira defendeu índios e incentivou a escravatura de negros: à luz do seu tempo estava demasiado avançado, mas à luz da nossa realidade não deixa de ser estranho, uns são humanos de primeira, outros de segunda. Mas, claro, é preciso enquadrar Vieira no seu tempo e valorizar Vieira pelo seu contributo à Língua Portuguesa – isso não está em causa. Mas uma coisa é certa, a estátua em si é tão “insignificante”, feia, um desperdício de bronze, uma mistura de realismo socialista (aquele braço para a frente) e de neoclassicismo (as crianças sentadinhas ao seu redor) que ficava mais bonita com uma cor avermelhada, dava-lhe vida. Por mim, só se apagava a palavra “Coloniza” e deixava-se o restante vermelho. Convenhamos, Vieira merecia melhor artista, outro facto.

   É preciso repensar o espaço público, é preciso denunciar as injustiças, é preciso combater o racismo que existe em Portugal, é preciso denunciar a apatia das elites fechadas nas suas bolhas … é preciso tudo isso, com derrubes metafóricos ou não, para despertar o poder e as suas elites. Se o derrube e destruição de património com a Revolução Francesa foi a faísca para a criação de Museus; talvez haja outros aspetos positivos no derrube de estátuas físicas e alegóricas do nosso tempo, nem que seja para lembrar que a mudança é urgente. Há casos e casos: casos com lógica, outros estúpidos, mas … calma. Não coloquemos tudo no saco do populismo e fascismo. Creio que as comunidades que decidiram retirar os seus objetos incomodativos não podem ser vistas como “fascistas”, bem pelo contrário, devem servir de exemplo. Não se trata de reescrever o passado, trata-se sim de dar melhor espaço público a quem também tem direito a ver-se nele representado.

     Se sou ou não a favor do derrube de estátuas? Mais do que ser a favor ou contra, vejo nesses atos sinais claros de mudança. É comum dizer-se que em Portugal não há racismo, isto é uma mentira. Há racismo (quantos negros são recusados nas entrevistas de trabalho?), machismo (quantas mulheres são mortas?), transfobia (quantos olhares de lado?), homofobia (que ainda é intensíssima) em Portugal, basta sairmos um pouco da nossa bolha e umbigo e olharmos com mais atenção. Se todos denunciassem, falassem talvez esta sociedade seria melhor. Mas, a verdade é que há muito servilismo e pedantismo neste país; e contra a propaganda do Estado, é necessário dizer o óbvio: somos ultraconservadores e em muitos aspetos somos “atrasados”, a começar pela elite. E dizê-lo não é apagar tudo aquilo que temos de bom. Podemos, sim, e devemos ser melhores.

II

FRAGMENTO #42

     Como se vê um mau crítico literário em 5 minutos? Simples. Quando, esse mesmo crítico, não consegue ir além da literalidade do texto. Ou, pior, quando sente que a paródia mais vil lhe serve de carapuça (duas faixas de azul vibrante com verde elétrico), o que é, de facto, um grave problema. Isto não é um poema, é um fragmento, assim como muitos dos seus textos não são Crítica, mas, sim, Crónicas de leitura. Este fragmento é quase tão filosófico e tão bom como os de Nietzsche (será que vai perceber que isto é uma auto-ironia que se transforma num espelho? Ainda vê bem?). Não vamos, aqui, partir estátua nenhuma, não, não, não vamos partir estátua nenhuma. Há que fazer como Christo (com h no meio): embrulhá-la em papel dourado, como sugeriu, e muito bem, Santos Barros, e colocá-la na prateleira dos Princípios Básicos da Literatura, no porão principal do Museu Municipal, na prateleira que ensina que o Autor (essa doce pessoa) não é o sanguinário do texto. Todos dizem-se “Críticos”, hoje em dia, são o exemplo vivo que a parábola de Cristo (sem h no meio), a da agulha e do camelo, ainda está bem viva.

III

     Cada geração conhece a renovação e atualização do papel do “Censor” e do “Crítico” que dorme. São egos feridos, balões de ar quente que dão de comer aos artistas e poetas “Sanguinários”. Quanto mais gritam, mais matéria-prima distribuem.

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 Cartolina dourada - A procura vai ser tanta que o preço já aumentou.