Três poemas do volume ‘Mesmo o silêncio gera mal-entendidos: antologia 2000-2020’ de Ricardo Domeneck

2001

 

Eu digo sim até dizer não

 

as circunvoluções
             e caprichos
        da atenção:
erguer a cabeça
e perder o sono 

            sopro
                   vento
             em que
                  uma primeira esfera
          de ar impele
                        outra ao movimento 

          ou em alto-mar
temendo menos a ausência
                  de resgate na superfície
que a povoação alheia
              e por isso informe, abaixo
n’água, invisível, mas parte
integrante das estruturas
do dia real 

    só a lucidez abre caminho
                  para o imaginário 

                            mas a carne insiste
                  no contínuo 

onde as pedras são comestíveis
          e exige-se a fome;
                           durante a transfiguração
             em que anjos e bandejas
        circulam seu jardim
                                é fácil salmodiar
providências e entregas; mas
         é com o linho enfaixando toda a
                    pele e a pedra
       separando esta caverna
da saúde do ar
            que se espera um Lázaro!
            Lázaro! e um segundo
         antes da asfixia
crer ainda
       que seja este o meu
               nome, seja ESTE o MEU
                             nome 

                    se cada folha parece
           percutir o sol hoje
e não se debruça do estame
                                              para o vazio  

                                  o mundo
                    é tão simpático 

           da montanha que fala resta
                  a mímica, da presença
o ventríloquo, de sua boca
o mapa que reconduz à porta 

               mão em mão com passos lentos

    mas foi Isaque a carregar a lenha
          nas costas, tomar o fogo e o cutelo
          na mão; e caminhou junto de seu pai 

     todo sacrifício é aparente e inútil, 

                              nenhuma
                árvore camufla
                            suas frutas:
                    as expõe
            ao pássaro, ao
                            chão, ao suco
                     na garganta, à recusa
                        do estômago 

            por
                          tanto 

         percorro os andaimes
                       de equilíbrio precário
                            :
                 ferro oxidável
                             saudoso
               de água 

              e a alegria de quem, na
obrigação de abater um novilho,
       espera que seu corpo, de repente
                   forte, sobreviva ao sacrifício, 

como uma garganta
enrijece-se rápida
para resistir à faca

*

2005

O poeta vai para o monastério

I.

como adormecer num longa
do Pasolini e despertar
num curta do Kieslowski;
e tem sentido, eu pergunto,
abstinência, parcimônia
polissílabas? se meu corpo
sempre foi teatro
do precário? êxtase
em ascese,
mas as extremidades
começam a cansar-me,
quem me dera
agora um dilúvio
na ponta dos pés;
a perda acopla-se
mas o oxímoro não
me acalma, ninguém
que preencha
meu ônus,
caminhando pelas ruas
como uma papisa,
uma diva, uma Kate
Bush ofendida,
cantarolando
“de longe sim flauta de luva”
para que não
se entenda que
entre dentes
cerrados invoco
(a primeira onda
sobre minha própria
cabeça) o
déluge sintflut dilúvio 

II.

derramo o leite no
chão de propósito,
firo,
furo os dedos
no garfo,
quero tanto
agradar e intuo
que Deus aprecia
desperdícios; assim
deslocado
como um peixe
n’água, olho
continuamente para
o teto à procura
das câmeras que
tornem oficial
meu protagonismo
nesta história,
pela manhã
o primeiro sussurro
sendo homem
ao mar homem
ao mar e só hoje
entendo minha
mãe gritando após
as surras “não
me venha
com esta
cara de Maria
Madalena
arrependida”;
ah o martírio
rosa de jamais
ter filhos que eu
possa chamar de
Abel
Rocamadour 
Luke Skywalker 

*

 

2007

Mula

                  Minha
senhora: os unicórnios
que caem com a raiz
não
voltam mais; ainda
que vangoghes
até que engasgues,
         sigo mula
a indiciar o caso
excepcional
do sem espécie,
self-archived tool, exílio
                 dos catálogos
a especificar o espaço
para a porcentagem da escolha
do puro, alheia que se agita
antes de abrir, dose cavalar
de juramento e
eguidade. Poupa-me,
Popeye: longe de mim
impor-me híbrida
à tua hípica - 
brutalmente homogênea,
especialista em fronteiras,
             eject de habitat,
eis-me, excelentíssimo,
a de cascos
             não retornáveis,
nula nulla
tal qual highbred hybrid
relinchando o já morto:
muslos de mulícia,
esterilizável, aureolar,
                 multívaga
             ambiquestre
     de mulas prontas,
perdoai vossa serva
preguiçodáctila aos berros
perturbando vosso áureo
piquenique do sublime,
           illicit mule
espirrando em vosso épico.
               Não
Blade
Runner
que resista
mesmo euzim
                         fake mullah,
insciente dos teus métodos,
ó sussurrável, hoof muffler
da palha do meu estofo.
Prometo-me estoica
           e subcutânea,
bem fazes em esporear-me
o couro catecúmeno à chuva
do teu cuspe, inestimável
senhor de eco intumescido:
       até que a mula
      aqui fale
como manda
o figurino,
e encontre a exit
de quem às caras
me dera lamber o mundo
com a própria língua: mulo
fundindo
       com a função da forma
os extremos do exorcício e
a fanfarra do sem categoria. 

*

Mesmo o silêncio gera mal-entendidos (Edições Garupa, 2021) antologia 20 anos de poesia de Ricardo Domeneck. O livro pode ser adquirido aqui. Achamos que este é um dos livros do ano em língua portuguesa e, em jeito de divulgação/ celebração, ao longo do mês de Dezembro partilharemos neste espaço mais alguns trabalhos de Ricardo Domeneck.