Quatro Poemas Suicidas
/Suplício
Empenhemos o rigor possível ao teatro do Inferno,
sabendo que o jogo eterno já começou
e o suplício antecipa as penas do Além:
haveria, antes de mais, que furar-lhe a língua puída
de toda a repetição, expurgar-lhe o céu do céu da boca,
fazê-lo regressar ao idioma ainda nascituro
que trazia lasso no corpo, cobri-lo
com os restos da mãe e levar-lhos à boca,
para que sinta a adstringência do seu roubo
e tenha a presciência de um dióspiro imberbe
como última refeição.
Só então lhe seria lida a sentença,
para que lograsse ouvir, como novo, as suas próprias palavras
e se alegrasse com as patifarias da juventude,
emprenhando saudade pelos ouvidos
e lamentando o dia em que não morreu à míngua
numa cidade estrangeira.
Genufletido sob as migalhas da culpa,
não pararia jamais de sangrar a laje
e ver-se-ia nu perante todos os seus nomes.
Haveria então de se levantar o resto do homem
e pô-lo em desfile, atenazar-lhe os mamilos
e as pregas da barriga, purificando-lhe
o reflexo mais primeiro da vergonha.
Aos genitais, depois de enxofrados, aplicar-se-ia
o gume mais rombo do magarefe – só por rotina –,
e num dos olhos, por fim, o corte de um papel fino
onde tivesse cuspido os seus falsos testemunhos.
Gritando pelos nomes de quem amou, veria os seus rostos
no cenho do carrasco, e já só teria forças para lamentar
o esquecimento que o varreria para cá da sua aurora:
uma última dor de mundo e a alegria de ver restabelecer-se
a ordem no seu próprio coração, para morrer em paz.
Corda
Chegou a tratar-se de uma suspeita
debitada pelos encargos do corpo
mas cedo nos alongámos apenas ao longo do espírito,
afinando a prosódia de um hino preparatório
para uma nova espécie de amor,
uma nação inteira deposta à margem de um rio velho,
entreolhado como um corpo
entre as questões do seu espírito.
Nenhuma laringe ecoará maior beleza
do que o embaraço de nos vermos enleados
nos filamentos que organizam outro peito,
nenhum desvelo mais fiel do que tanger
a cítara que ocupa o vago de coração nenhum.
Apesar da parcimónia que trago aos dedos
habitarei para sempre o teu diâmetro
e mais não sou do que um embrulho de memória,
atado pelas veias e lacrado pelo espírito:
mesmo que te perca de vista
e não me habites de volta,
que desças pela torre onde só posso adivinhar-te,
restarei de pé, a contraluz,
à espera de me saber contado entre as primeiras células,
percutido de novo, lembrando a frequência
da fina corda de nylon que ainda me amarra ao futuro
pelo pescoço.
Isótopo
Houve quem largasse a pele em Chernobil
e seja agora um faraó enterrado em caixão de zinco
sob pirâmides de betão e chumbo.
Houve velhotes que se alistaram em Fukushima
para que os filhos não morressem de absurdo,
evitando assim a mancha de outros venenos
depostos sobre a pele que lhes serve de céu ao coração.
Como eles, também eu queria levar no corpo
uma estirpe mais ou menos subatómica
do silencioso mal do mundo:
sem heroísmos nem caixões de zinco,
apenas a consciência aguda de quem fui:
um homem baço e tosco, só de caroço,
isótopo manso sem sarcófago
nem filhos,
apenas o artifício de mastigar a língua
para que um dia o sangue possa ser o sumo
sacerdócio daquilo que tenho por voz
– e isso pareça um sacrifício.
Est.ética
(de Sob a forma do silêncio, 2019)
quero que este poema seja um gesto
quero que este poema seja um martelo
um formão
um fósforo
um prego
um parafuso
um tubo de cola
queria que fosse bom ou belo
mas já não quero
quero apenas que assente
como um fato feito por medida
(ainda assim desconfortável)
que seja meramente apreciado
que satisfaça como um gelado de baunilha
que fique sem efeito
quero que este poema seja intemporal
inútil e essencial
digno de recensões e teses de mestrado
que entre em todas as antologias e discotecas
que beba demasiado e se arrependa
que faça promessas e as quebre
que envelheça mal e fique rezingão
que seja solitário e se sinta especial
quero que este poema
não me salve
quero que este poema seja urbano e pitoresco
tropical e glaciar
complexo e problemático
intrigante e desbocado
que tenha um estilo íntimo subtil
superlativo grandioso
breve e palavroso
cheio de anáforas antíteses hipérboles
mas bem-comportado
familiar e de bom gosto
sem fazer más figuras de estilo
quero que este poema seja inteligente e autobiográfico
húmido e pornográfico
bom de cama e casto
que ande sempre nu pela casa
mas viva sozinho
quero um poema sem descrições
sem explicações nem mecanismos
um poema lógico antropológico
astrológico arqueológico
patológico tautológico
e que cale o que não pode ser dito
quero que este poema siga as regras
e as mude um bocadinho
quero que este poema seja clássico e pós-moderno
romântico e neo-realista
que tenha hype e seja vip
a moda mais recente a tendência da estação o fenómeno da rentrée
(que faça de mim um poeta uma promessa um novíssimo
a mais importante voz da minha geração dilapidada)
quero que este poema seja lido no teatro nacional
na biblioteca municipal e no centro comercial
e que os seus versos apareçam nos manuais de português
que sejam pichados nas paredes e tatuados no peito
que se tornem epígrafes e sejam glosados
gozados
mal traduzidos
e esquecidos
quero que este poema seja o zero
o zénite
e o fim dos meus poemas
quero que este poema falhe redondamente
e acabe de vez
quero que este poema
acabe comigo