Ripley
/Ripley, de Steven Zaillian, é uma série americana de thriller psicológico em oito episódios de 55 minutos, criada por Steven Zaillian e transmitida desde 4 de abril de 2024 na plataforma Netflix. É uma adaptação do romance policial Mr Ripley, de Patricia Highsmith (1955), e prolonga as versões cinematográficas Plein Soleil (1960) e The Talented Mr Ripley (1999).
Sinopse (com spoilers)
Em Nova Iorque, no início dos anos 1960, Tom Ripley (magnífico Andrew Scott), um trafulha solitário, abandonado, com pouca sorte (um looser), é abordado por um detetive privado que lhe transmite o desejo de um rico armador, Herbert Greenleaf, de se encontrar com ele. Este último foi informado, equivocadamente, de que Ripley era um velho amigo do seu filho, Richard Greenleaf (Johnny Flynn), apelidado Dickie, que vive, há vários anos, a dolce vita em Atrani, Itália, com a sua namorada, escritora de viagens, Marge Sherwood (Dakota Fanning), sonhando em ser pintor. Quer contratá-lo para convencer Dickie a regressar aos Estados Unidos. Apesar de Tom não conhecer Dickie, aceita, pela aventura e pela recompensa financeira.
A descoberta que Tom faz do estilo de vida confortável, hedonista e elegante de Dickie inicia uma trama complexa de mentiras, manipulação e morte. Mas parte de uma admiração verdadeira por Dickie. Tom insinua-se na relação entre Dickie e Marge, o jovem casal, e semeia alguma discórdia. Numa viagem a San Remo, enquanto Richard tenta afastá-lo da sua vida, Tom assassina-o em alto mar num bote alugado, afundando depois o seu corpo amarrado à âncora. Esconde o bote e apanha o comboio de volta a Atrani e começa a fazer-se passar por ele, substituindo-o na dolce vita (sem Marge), que ele acredita merecer.
Ripley é uma personagem que percorre vários livros de Highsmith, e se este diz respeito ao livro de 1955 citado acima, tem contudo a espessura de várias camadas que ultrapassam o Mr Ripley. Por isto e porque os filmes anteriores — Plein Soleil (um Alain Delon vingativo e sedutor) e The Talented Mr Ripley (um Matt Damon que se vê ultrapassado pelas circunstâncias e muito mais dependente do talento e ousadia, também performativas, de Jude Law) — lhe abrem oportunidades estéticas (narrativas, iconográficas e cinematográficas) que talvez não tivesse se fosse originário (a primeira obra deve ser mais escorada no verosímil do que as versões que lhe possam seguir). Nesta série, a opção pelo preto e branco, um claro-escuro com inúmeras gradações, recusa a ideia de uma Itália de sol e praia (central nas duas versões anteriores) sem parecer arbitrário, como se fosse um lance de dados estético inoportuno. A fotografia, Robert Elswit, pôde, assim, ser composta a partir dos princípios das pinturas de Caravaggio: um fundo escuro com iluminações intensas de partes dos elementos que as compõem, incandescências. Um Caravaggio omnipresente, pelo que acabei de dizer, mas também pelas citações diretas, história dentro da história e a circunstância de ter sido um assassino perseguido (matar eleva tanto quanto rebaixa). Ripley é, pois, sombrio e luminoso. Mas como o fio narrativo se desenrola a partir do ressentimento (em Plein Soleil talvez seja a vingança), um Ripley desconsiderado que tem mais talento do que os senhores (Dickie, Marge, o inspetor). Um Ripley que não é reconhecido, mesmo quando só pretende ser o melhor amigo de Dickie. Ser reconhecido como o cão de Dickie. É a escolha desta variação, que com certeza muito deve à Andrew Scott (que conhece Hamlet de trás para a frente), que justifica tudo o resto.
Em primeiro lugar, a demora. Diálogos, com o dito e o não dito, prolongados (de uma precisão semântica e performativa incrível, só assim o inspetor parece estar próximo de descobrir o que acaba por ficar encoberto). A câmara que espera pelas personagens, ou fixa longos planos (contra o frenesim atual dos planos curtos, multiperspetívicos, em movimento), planos fotográficos mais do que cinematográficos. Cenas em que sentimos o tempo longo, quase angustiante, de uma subida dificílima para dentro de um bote, ou as várias escadas que se sobem e descem, marcando um cansaço (e simbolicamente uma moral icariana) que só pode ser sentido se a câmara e a montagem aceitarem mostrar quase todos os degraus. O tempo que é necessário para os micromovimentos do rosto serem reveladores. O tempo que domina e é dominado, domesticado pelo olhar de Ripley, quando passa da afeição e observação para a geometria da manipulação, da omissão e da previsão (neste caso parece um olhar vazio, mas é apenas um olhar que se desvia da culpa e da descoberta que outrem pode fazer, é o olhar de um assassino que se quer safar e, por isso, não tem tempo a perder com a vidinha). Para este tempo da demora também contribui uma banda sonora frugal, com alguma música ligeira italiana da época (1960). Em contraste absoluto com o histrionismo do jazz (Miles Davis e Charlie Parker) de The Talented Mr Ripley. O ritmo lento contribui para uma hipnose que o espetador aceita como forma de aceder, talvez sem sucesso, ao mistério de Ripley. Não ao de um assassino que quer escapar, mas ao seu para lá bem e mal, de uma contenção emocional que fere as leis da humanidade.
Patricia Highsmith escreveu livros policiais, mas escreveu mais do que isso. Escreveu sobre direitos e deveres humanos, sobre a forma de subvertermos o que somos e o que devemos ser. Sobre uma maldade banal que só desordena, sem força para converter, para originar novos mundos. Tom Ripley só pretende que o reconheçam e deixem viver não outra vida realmente única, mas repetir e prolongar a vida de Dickie (arruinar a ordem da identidade). No limite, será uma vida falsa, um falso Dickie (de quem se liberta no final). E como em tudo o que é falso, reduz-se a intensidade vital, até na composição dos exteriores feitos numa Itália sem enxames de vespas e magotes de crianças e adolescentes capazes de enganar, sem remorsos, os mais incautos. O ruido italiano é abafado pelas sombras do mal e pelo desvanecimento do autêntico. Dickie é, aliás, um pintor medíocre que tem um Picasso em casa mas que quase o omite para destacar, sem convicção, as imitações grotescas que realiza. O cunho da verdade está em Marge (diferente no último episódio), mas falta-lhe a força e o talento para a impor, e em Caravaggio. Só este último nos mostra, sem rodeios, como as lâminas são cortantes e a vida se faz com reais golfadas de sangue. Nos mostra como a arte (engano) é mais viva do que a vida.