SAL NA PELE, SÃO PAULO

Vamos fazer um filme, uma viagem
ao doce columbário das almas mortas.
Cada homem, cada fruto emagrecido
orará na suculência onírica do seu cadáver:
tantas vidas que não bastará uma para contá-las.
Capta isso ao arrepio, com uma luz lanceolada
que te atravesse a garganta em golpes de asa.

Olhos lambuzados de verdejante miséria
junto aos parques que atravessam o morro:
alcandorado percorro as pústulas de São Paulo.
Há quem se aproxime e cozinhe a sua versão
de humanidade com sacos e vozes nos ouvidos,
quem rejeite o perdão a prazo da homilia,
a chatice imensa da charneca do trabalho
que obriga a acumular breves batalhas
até ao perro desfecho da biografia.

Ao menos que o pouco que registamos
entretenha uma noção de verdade,
remova a praga dos deuses de barro
relidos em esquálidas folhas de jornal.
Vamos fazer o filme do furor perdido,
o mesmo que César viu transir de frio
ao virar a lenta página do desastre.

Que não deixe nunca de nos incomodar
a verde luzerna suicidando-se gelada
entre as ondas de nenhuma circunstância.
Assim que o fumo da névoa for propício,
captemos os testemunhos mais extraviados.
Quanto ao célebre estábulo da criação,
é estender-lhe por cima um pano de linho,
como se faz aos papagaios que se apeitam
na sua interesseira adoração.

(inédito)