Visitações

Um dia já todas as vozes
chamavam ao mesmo tempo.
Neste calendário não havia
a métrica fílmica, discursos
ou palavras lúridas para revisitar,
somente imagens que se profanavam
a si mesmas na ânsia de se recriarem.
Os tecidos envelhecidos do verbo não eram
pardos, as complexas idades da mente
estavam a ser preparadas. Lembravam
os tecidos moles de rio e rochedo, carmes
conseguidos com a primeira saliva do dia.

Esquecemos a cega censura da génese.
O que distingue as manhãs supremas
de Shelley e Keats só pode ser
o descuido de uma ou outra gota a mais
vertida na lâmina do orvalho. Sabemos
como eram essas visitações escandidas
pelo ângulo de uma luz ainda nodosa.
Um dia já todas as vozes
chamavam ao mesmo tempo
no nosso quintal delapidado,
e súbito eram horas de Shelley
e Keats neste calendário inumerado.

Vou em plena voragem amniótica do tempo.
For ‘twas the morn: febre nos olhos,
Sopro estéril no sangue das pedras frias
quando as levantei para conhecer
o tenebroso desenho das lagartixas.
Dedos desencontrados de futura biografia,
sinas que nem um sutra saberia destecer.
Na aragem da visão passavam mãos meninas
com selhas transbordantes de branco,
aventais com a goma dos líquenes
enquanto, marcado pelos dentes das estrelas,
flectido na terra, este coração desaparecia. 

(inédito)