“Trabalho de Casa” de Nuno Júdice

In Memoriam Nuno Júdice (1949-2024)

O primeiro poema de Nuno Júdice que me lembro de ter lido na vida chama-se “Trabalho de Casa” e estava incluído na antologia Século de Ouro: antologia crítica de poesia portuguesa do século XX, organizada por Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra e publicada em 2002, por uma editora que já não existe, a Cotovia. Eu tinha dezasseis anos e estava no liceu, e esse livro foi-me oferecido por uma amiga que recordo com um eterno capacete de mota debaixo de braço, de jeans sempre rasgados num joelho. “Trabalho de Casa” é um poema que pertence ao livro A Fonte da Vida (1997), foi escolhido por Margarida Braga Neves para integrar a antologia e vem acompanhado de um comentário desta estudiosa. O poema começa com a interrogação de uma imagem da memória, a do degelo de rios, mas onde, talvez um pouco inesperadamente mas sem dúvida propositadamente, nunca se pronuncia a palavra primavera até chegarmos ao penúltimo verso. Vale a pena transcrever o poema:

O que faço na memória de um degelo de rios, quando
as águas caem sobre as águas, sob a espuma redundante
de ideias brancas? Aqui me afundo até ao próprio
fundo de mim próprio, aqui onde os gestos humanos
da despedida e do amor não têm outro sentido
além do que nasce das próprias águas: efémeros,
como o tempo, e como o tempo presos ao que, cada um de nós,
ignora do outro. Acendo cigarros nos cigarros,
respirando o fumo húmido das origens, vigiando
a transparência que se desfaz no intervalo das folhas,
quando o vento as empurra para a estrada, pergunto
de onde vem a minha saudade de ti, e até onde
vai o meu desejo de te ouvir, de novo, à minha frente,
enquanto as horas passam como se não tivessem de passar,
e os teus lábios bebem todo o tempo da minha vida. Como
se o desejo não se esgotasse, também ele, como
estas águas que acabam em cada instante em que se renovam,
trazendo as chuvas eternas do norte para dentro de poços
sem fundo, até ao fundo dos lagos mais subterrâneos,
puxando com a sua negra densidade os meus
impulsos de treva: cama obscura para onde desço
quando adormeço. Mas tu, com os teus braços de raiz aérea,
puxas-me para esse cimo de montanha onde o silêncio
se transforma em sílaba - a sílaba inicial
do mundo, a interrogação do gesto nascente de todas as
origens, o soluço de um suicídio de murmúrios,
percorrida pela única percepção inútil: a da vida
que se esvai no instante do amor. E encostamo-nos à pedra
abstracta do horizonte, a que nos deixou sem voz quando
as grutas do litoral se abriram; para que a pedra nos beba,
gota a gota, todo o sangue. Então, é nas suas veias
que correm as nossas pulsações. E afastamo-nos, devagar,
para que a terra viva através de nós
uma existência puramente interior, despida
do fulgor animal das manhãs. Sentamo-nos
no mais longínquo dos quartos, de janelas fechadas, e
abraçamo-nos com o rumor de primaveras clandestinas,
com o inverno nos olhos.

Não sei bem se há vinte anos, quando li este poema pela primeira vez, me terá parecido tão evidente a linha de tensão que se vai desenhando à medida que o poema transcorre, como de resto explica Margarida Braga Neves no comentário que acompanha o texto em Século de Ouro, de um tu, para um eu, para um nós, para desaguar, como não podem desaguar os rios, numa espécie de paradoxo temporal onde se insinua uma tensão entre o eu que fala e o tu a quem ele se dirige: circularmente, num rumor (numa memória?) de primaveras clandestinas que é esbatido dissonantemente (no sentido em que o inverno é sucedido e não precedido pela primavera, que é a estação marcada no degelo mencionado no início do poema), pelo inverno estampado nos olhos do par que se abraça no final. Este rumor clandestino de primaveras faz qualquer coisa à presença do inverno nos olhos, coloca o significado do gesto de dois amantes que se abraçam, “no mais longínquo dos quartos,” (no lugar mais protegido do rumor do mundo) entre duas estações e não numa só em definitivo, a da memória e a presente – uma tensão que terá qualquer coisa a ver com a ambiguidade do amor (mas sobretudo com a da duração da vida), tornado ambíguo se por mais nada justamente pela condição inexorável do inverno enquanto símbolo da morte. Estou em crer que num poema cuja paisagem semântica é a do afundamento e da profundidade há, ao mesmo tempo, nesta contradição de amantes que simbolizam a primavera com o inverno nos olhos, qualquer coisa de muito vital, de muito importante não tanto para a progressão do poema, mas enquanto pequena representação de uma experiência de vida, cifrada na presença do rio, metáfora de um percurso de vida que corre, a do amor enquanto forma de resistência e fonte de significado. De resto, nesse livro de Nuno Júdice, A Fonte da Vida, é em parte uma fonte de palavras, linhas de sentido vistas e revisitadas, bastantes vezes em face da morte.

Digamos, para começar, que há duas notas discordantes que parecem ameaçar a possibilidade de harmonia neste poema e que são vitais para a narrativa que nele se desenrola. Essa narrativa é sobre espera, encontro, o significado da presença de amantes numa paisagem e diante um do outro. Além disso, obliquamente, o poema é sobre um escrutínio do que significaria a ausência desse encontro na trajectória de uma vida, o que tem uma correspondência com o movimento de afundamento do narrador. Se tivéssemos de perguntar que espécie de conhecimento encerra este poema poderíamos talvez dizer: ele sugere ao leitor que correspondência e harmonia não se equivalem. Como, então?  

Uma das notas discordantes que eu julgo haver neste poema é aquela que existe nesta contradição de um abraço que carrega consigo o rumor da primavera, que, rumor que seja, resiste em face do inverno, que pode ser aqui entendido, convencionalmente, como uma estação final. A outra nota discordante é a que sustenta a antecipação do encontro e escuta-se na voz do “eu” que fala. Chamo-a discordante porque ela parece resistir e iludir a harmonia convencional dos tropos poéticos que ela própria evoca (o amor, o fim do inverno, a chegada da primavera). Por exemplo, não há na sequência da observação deste degelo uma réstia sequer do tipo de antecipação luminosa que é descrita por Longo em Dáfnis e Cloe, esse romance da antiguidade que é a celebração máxima de um primeiro amor em estado de primavera absoluto em que lemos acerca da espera pela chegada dessa estação:

But Chloe and Daphnis, remembering the pleasures they had left behind them, their kisses and embraces and meals together, passed sleepless nights and miserable days, and looked forward to the spring as to a resurrection from death. 

Daphnis and Chloe, Tradução de Paul Turner, Penguin Books, 1968, pp.70-71.

Dáfnis e Cloe são, no romance de Longo, muito jovens, dois pastores adolescentes a quem tudo acontece pela primeira vez. Isto faz-me pensar que a estação do tempo presente do poema talvez não seja necessariamente a primavera (o degelo pode ocorrer ainda no inverno), mas a sua memória e uma memória revista, pelo menos até ao momento em que o “tu” encontra o “eu”, com ambivalência. Pergunto-me que versos do poema de Nuno Júdice terão segurado a minha imaginação adolescente de quem não ia morrer nunca, e, portanto, não podia bem entender este timbre de inverno no final de um poema que começa na evocação de um degelo. É difícil de reconstituir isso ao certo, mas talvez tenham sido aqueles que me parecem ser ainda hoje as dobradiças da breve (não confundir com pequena) história que aqui se desenrola, os momentos onde se fixam os seus pontos de viragem. São aqueles versos que mais obviamente introduzem instabilidades na paisagem do poema: “pergunto/ de onde vem a minha saudade de ti;” “acendo cigarros nos cigarros,” “até ao fundo dos lagos mais subterrâneos/ puxando com a sua negra densidade os meus/ impulsos de treva.” Estes últimos versos, com qualquer coisa de dionisíaco, estão ligados ao movimento de afundamento que o “eu” descreve na primeira parte do poema e que é interrompido pelos “braços de raiz aérea,” do “tu” que o puxa “para esse cimo de montanha,” que, nota Margarida Braga Neves no seu comentário, é o “lugar de energia e criação”. Mas é o movimento do afundamento que me importa aqui, que começa nos primeiros versos, se adensa com as chuvas eternas do norte, que caem dentro de poços sem fundo, ligados a lagos subterrâneos, finalmente metamorfoseados na cama obscura para o onde o “eu” desce para adormecer. É desse ponto mais fundo de todos, mais subterrâneo, que o “tu” resgata o “eu”. Este afundamento até ao ponto de maior profundidade parece-me já inevitável naquele auto-retrato do narrador, acendendo cigarros nos cigarros. O gelo que imobilizara os rios mantivera, afinal, a estase da voz central do poema. A partir do momento em que o degelo começa, o seu afundamento é inevitável. Esta não é de todo uma primavera como a que é esperada pelos amantes adolescentes de Longo. Trará consigo uma destruição que parece irreversível como a passagem do tempo, até que braços de raízes aéreas parecem cortar esse movimento.

Fragmentos de um discurso amoroso de Roland Barthes não inclui uma entrada para primavera, mas inclui uma entrada para o verbo “s’abîmer,” “ser submergido,” “afundar-se” ou, como surge em tradução inglesa (de Richard Howard), “to be engulfed.” “S’âbimer” é o fragmento onde Roland Barthes descreve o movimento pendular e violento de um aspecto muito particular de um estado de paixão. O momento de hipnose em que o amante se sente submergido parece-me remeter (embora as referências de Barthes sejam Werther e Baudelaire) para um estado de oscilação entre os impulsos de Eros e Thanatos que foram discutidos por Freud em Para Além do Princípio do Prazer: num momento de sofrimento ou felicidade o amante é submergido por uma disforia desesperada, que pende para a aniquilação. A este estado sucede-se um profundo sentimento de deslocação, a impressão de não pertencer a lugar nenhum, nem sequer à morte.     

É, no entanto, a quarta secção desse fragmento que me importa aqui, porque é aquela em que se pensa sobre o elo entre a paixão e a morte. 

4. Amoureux de la mort? C’est trop dire d’une moitié; half in love with easeful death (Keats): la mort libérée du mourir. J’ai alors ce fantasme: une hémorragie douce qui ne coulerait d’aucun point de mon corps, une consomption presque immédiate, calculée pour que j’aie le temps de désouffrir sans avoir encore disparu. Je m’installe fugitivement dans une pensée fausse de la mort (fausse comme une clef faussée): je pense la mort à côté: je la pense selon une logique impensée, je dérive hors du couple fatal qui lie la mort et la vie en les opposant.

E é este último raciocínio que me importa particularmente: “eu flutuo para fora da parelha fatal que liga a vida à morte ao contrapô-las.” Esta afirmação parece-me particularmente relevante para ler os versos finais de “Trabalho de Casa.” Talvez o aspecto mais inesperado deste poema seja o modo como, não havendo aqui um caso de paixão, pace Keats, pela morte (a trajectória do narrador nega essa possibilidade), há, em vez disso, uma observação das relações de continuidade e (con)sequência entre vida e morte, num movimento de reconhecimento profundamente enraizado nos ciclos do mundo natural, numa tentativa de respirar em uníssono, num movimento que inclui até a melancolia da morte, com a passagem do tempo e com as transformações de paisagens interiores e exteriores. Daí lermos: E afastamo-nos, devagar, para que a terra viva através de nós/ uma existência puramente interior...

Plenitude é uma palavra difícil de escolher para falar sobre poemas sobre essa sagrada trindade da poesia lírica: a vida, o amor e a morte. Roland Barthes sabe disso, a sua solução é pensar que ao opor vida à morte há a possibilidade de uma deriva, um lento flutuar para fora do afundamento que quebra o ciclo. Eu penso que a mesma deriva existe neste poema de Nuno Júdice, mas penso que os termos em que ela é pensada são diferentes daqueles que propõe Barthes.

Talvez a quebra desse ciclo exista sob a forma do impulso vital pelo qual o narrador é puxado pelo “tu” para o cimo, mas o que é alterado por esse gesto permite incluir, mais tarde, a morte na ecologia dos gestos que afirmam uma vida. Esse impulso vital não me parece ser, então, exactamente da mesma ordem daquele fragmento de um poema de Baudelaire citado por Barthes na sua discussão de “s’abîmer”: “Un soir fait de rose et de bleu mystique,/Nous échangerons un éclair unique,/ Comme un long sanglot, tout chargé d'adieux.” (“Les Amants Morts,” Fleurs du Mal). 

Cheguemos então a uma das poucas coisas que verdadeiramente importa perguntar a um poema. A presença dos amantes, do amor, muda a terra, um pouco como lemos num verso do “Trabalho de Casa,” os amantes afastam-se para que “a terra viva,” ou, como sugere Baudelaire, poeta da decadência fértil, existe apenas como uma efémera fulguração, cuja expressão final é um longo soluço? Como amar, e sustentar, o significado do que é, por natureza, desesperado e efémero? E porquê chamar a isso “trabalho de casa”?  

Em 1913, o ano em que estreou em Paris A Sagração da Primavera de Stravinsky, Guillaume Appolinaire publicou em Alcools, um poema sobre um amor infeliz que tem alguns pontos de contacto com “Trabalho de Casa:” é um poema sobre dois amantes cuja ligação é vista em relação com o movimento inexorável do tempo e de um rio. Le Pont Mirabeau parece ser à superfície um poema mais convencional do que aquele que abre a colecção e o precede, Zone, um dos grandes poemas experimentais do modernismo. Escrito sem pontuação, alicerçado num estribilho que se repete por quatro vezes e que expressa a monotonia da estase do narrador, Vienne la nuit sonne l’heure/ Les jours s’en vont je demeure, o movimento do poema (ou a ausência dele) é em certo sentido o oposto do movimento quase perpétuo, e que só pára no abraço dos últimos versos, que atravessa “Trabalho de Casa.” O narrador de Le Pont Mirabeau mantém-se imóvel naquela que era, à data, uma das mais novas pontes de Paris, enquanto por baixo o Sena corre e ele se lembra de um tempo em que a alegria se sucedia sempre à dor e os braços dos amantes, naquela que é uma das imagens mais belas que conheço num poema sobre um amor infeliz, eram como pontes (Le pont de nos bras passe). À medida que o poema e o tempo avançam, o amor esvai-se como a água que corre, o que me lembra da imagem de Barthes, une hémorragie douce qui ne coulerait d’aucun point de mon corps. Mas não há aqui nada de doce, exceptuando talvez na memória distante de uma alegria que se tinha seguido sempre à dor, mencionada na primeira estrofe. Lê-se, a dada altura, numa rima que sugere a monotonia da imobilidade do narrador e ao mesmo tempo a violência que ele experimenta, “Comme la vie est lente/ Et comme l’Espérance est violente.” Os dias e as semanas passam, mas nem a vida nem o amor regressam, no entanto o “eu” mantém-se na paisagem até ao fim do poema da forma que é veiculada por este verbo difícil de traduzir, “demeure,” que tanto quer dizer “eu permaneço” como “eu habito.” A oposição entre a figura humana nesta paisagem e o correr do tempo e o fluir do rio é, como a esperança, violenta. O narrador reconhece a necessidade de movimento, mas não se move. Le Pont Mirabeau é um lugar de akrasia. Esta imobilidade pára o tempo do narrador e é uma prefiguração da imobilidade da morte, também no sentido em que exclui a possibilidade de outros movimentos, da formação de novos significados. Este amor que morre mantém-se, pela imobilidade do narrador, fixo nesta condição fantasmagórica, nem parte do mundo dos mortos nem dos vivos. 

Este estilhaçamento da possibilidade da formação de novos sentidos ou significados tem, acidentalmente, outro elo, não exactamente poético, com a ponte Mirabeau. Em 1970, Paul Celan não vivia muito longe desta ponte, no número 6 da Avenida Émile Zola, e é desta ponte que ele se suicida numa semana chuvosa do final de Abril de 1970.  Há uma presença prolífica de rios na poesia de Celan, mas o poema sobre um rio que me importa aqui é um onde a possibilidade de sentidos é profundamente mutilada. Paul Celan escreveu em 1963 um poema cuja paisagem partilha, pelo menos parcialmente, uma ressonância de significados que são evocados pela descrição, a meio de “Trabalho de Casa,” dos poços sem fundo onde caem as chuvas do norte. No brevíssimo poema In den flüssen, Nos Rios, Celan fala dos rios que estão a norte do futuro:

In den Flüssen nördlich der Zukunft
werf ich das Netz aus, das du
zögernd beschwerst
mit von Steinen geschriebenen
Schatten.

Comentadores de Celan, como Lefebvre e Joris, notam que o norte em Celan é associado ao gelo e à neve e, assim, a paisagens de desolação e morte. Se, como sugere Joris, esta imagem está relacionada com o abuso de certas mitologias nórdicas feitas pelos Nazis, ela remete para um universo de nacionalismo, propaganda e campos de extermínio. É possível que haja nesta imagem dos rios a norte do futuro um eco de uma ideia equivocada, mas bastante disseminada, que normalmente temos sobre o modo como os rios fluem, de norte para sul (os rios, na verdade, correm em todas as direcções).

O que é que acontece se for o rio a morrer? 

No fim do verão de 2021 um amigo meu quis mostrar à sua companheira o rio que corria perto de uma das aldeias onde ele costumava passar os verões da sua infância, uma pequena povoação perto do Monte Pélion, onde na mitologia homérica o centauro Quíron educara Aquiles, entre outras coisas na arte da medicina e da música, uma história que é contada por Píndaro, numa das suas Odes (a terceira ode nemeia). No calor ainda inclemente do princípio de Setembro demos voltas e voltas na floresta que rodeia a montanha sem conseguir escutar sequer o mais remoto rumor do curso desse rio. Escutávamos apenas de longe em longe os distintos guizos das cabras, cada um com o seu som diferente, além de nós e das cigarras a única coisa viva no sol violento da tarde. Até que caminhando em direcção à aldeia, Mélies, com a sua ponte férrea desenhada noutro século pelo pai de De Chiricho, tropeçámos no curso do rio, a sua irregular bacia branca de pedra exposta e completamente seca, com as marcas de erosão onde a água havia corrido, sujo de vegetação seca. Eu achei que a minha amiga, que é a poeta grega Tonia Tzirita Zacharatou, fosse escrever um poema sobre a morte do rio, mas o poema que a minha amiga escreveu não é sobre isso, ou não é exactamente sobre isso. É um poema que fala sobre a relação entre desaparecimento e memória, e sobre o papel da memória e da imaginação em face de um tipo de destruição inexorável. Como “Trabalho de Casa” e “Le Pont Mirabeau” é um poema que se interroga sobre o que fazer com uma memória, mas neste caso não uma memória própria, mas uma que nos é dada por alguém que amamos. 

Na penúltima estrofe lemos: “Querias/ mostrar-me/ uma coisa importante/ porque não é suficiente para ti/ descrever-me as coisas./ Querias que a visse contigo/ e ao amá-la, que te amasse/ mas é impossível/ lembrar/ onde o viste pela última vez.” No entanto, o reconhecimento desta impossibilidade, arrasta consigo o significado desta tentativa irrealizável de dar a alguém a imagem de um rio que desapareceu: “A promessa de uma parte de milagre/ entre séculos de folhas mortas de sicômoros/ era a tua maneira de me dar uma história.../ e, no entanto, acabo a guardar, com um poema/ uma memória que não me pertence.”

O que é, ao certo, mudado quando um poema produz uma deslocação que parece impossível, digamos, preservar um rumor de primavera em face de um inverno inevitável ou dar-nos a memória de um rio que nunca chegaremos a ver? Não sei se é ao certo uma metamorfose, aquilo que no nosso entendimento é mudado quase até à ordem da revelação, aquilo que pede de nós o cuidado da preservação (de um rio, do afastamento de um afogamento para lá do mais interior dos quartos), ou um trespasse, aquele modo muito particular de significação de um poema verdadeiro que nos atravessa completamente para nos deixar num lugar onde não estávamos e aonde talvez nunca chegássemos se não nos tivéssemos encontrado com ele. O mesmo sucede com “Trabalho de Casa.” A conclusão não lógica deste ensaio, em face destes poemas, talvez seja dizer que o que nos afasta da morte não é o tempo que ainda temos para viver, essa ilusão por vezes equivocada de que existe para nós um curso regular de rio, que de resto não podemos nunca saber até onde se prolongará, mas antes a alegria, o reconhecimento dos outros, a imaginação que determina a tessitura de um poema.  

"Lugares Comuns" de Ana Luísa Amaral

In memoriam Ana Luísa Amaral (1956-2022)

Um dos meus poemas preferidos de Ana Luísa Amaral passa-se num café inglês. Chama-se “Lugares Comuns.” Nele, uma mulher a fazer tempo para apanhar um avião entra num café manhoso em Londres. Em parte, gosto desse poema porque aquele café me é familiar. Tenho a certeza de que já lá entrei muitas vezes, embora não faça a mínima ideia de onde fica ou que café possa ser ao certo. Na verdade, à medida que vamos lendo o poema, fica claro que todos sabemos que café é este e que todos já lá entrámos, em Londres e noutras cidades. A qualidade do café não é má, mas também não é espetacular e muitas vezes temos sido cúmplices deste café. A qualidade é, na verdade, melhor do que tínhamos esperado em face do sítio. Neste poema, no entanto, a familiaridade do lugar aponta constantemente para a absoluta necessidade de o estranharmos. E acho que esta tensão entre estranheza e familiaridade, tantas vezes traduzida num jogo entre escala épica e quotidiano noutros poemas de Ana Luísa Amaral, é um dos aspectos mais singulares da sua poesia. É algo que está muito vivo na relação com coisas, pessoas, lugares que aparecem noutros poemas. É uma das coisas de que mais gosto no seu estilo.

Neste poema em particular, este manhoso café inglês que é um lugar-comum está povoado de homens. Exactamente vinte e três, diz-nos a narradora. Uma mulher entra então num manhoso café inglês onde está sentada uma tribo de vinte e três homens e apenas uma mulher (quieta, a ler a um canto) e, assim nos é dito, ao entrar, “todos os preconceitos” de mulher da narradora vieram ao de cima: só havia homens a comer bacon com ovos e tomate. O outro preconceito não tem muito a ver com comida, mas a narradora repara que, estando sozinha neste café onde só há homens, não é necessário querer saber muito deles, que os homens ingleses até nem se metem muito com mulheres, ao contrário dos “nossos” (homens portugueses, isto é). Reparo que nunca em momento nenhum do poema o cheiro do café é descrito, mas a impressão desse cheiro entranha-se em nós à medida que vamos lendo. A narradora diz-nos que o café é manhoso, mas não é mal-intencionado e que ao ver a mulher que lê a um canto se sentiu mais forte e que não sabe porque é que se sentiu mais forte, mas que assim foi. A voz que se ouve no poema é parte da instabilidade que constantemente nos acompanha ao lê-lo.

A instabilidade do olhar da narradora, que se expressa com uma ironia sarcástica, mistura de familiaridade e desconforto, que não é muito raro uma mulher sentir em certos cafés manhosos por esse mundo fora, é decisiva na forte impressão opressiva que nos é comunicada. Este poema sobre este café que é um lugar-comum lembra-me um pouco a cena de abertura do Inglorious Bastards de Quentin Tarantino. E imagino que talvez Ana Luísa Amaral se risse desta comparação e talvez discordasse. Mas é uma mistura de opressão e potencial de violência que só sentimos quando damos com as forças mais opressivas da história. Começa com o facto de que, com um sarcasmo magistral, que satiriza em apenas uma estrofe tanto o colonialismo português, quanto o inglês, quanto o provincialismo mesquinho de ambos, deixando-o a pairar sobre o palco do poema, e que segue uma linha que continua no breve diálogo que a narradora tem com o homem que lhe serve o café, cujo sotaque cockney se houve de longe numa das frases mais batidas que empregados de cafés manhosos gostam de dizer a mulheres em cafés de Londres: “There you are, love.” Consigo ouvir o sotaque e a inflexão com que esta frase é pronunciada não só quando a imagino proferida em poemas de Ana Luísa Amaral passados em cafés manhosos de Londres, mas dita por motoristas de autocarro, vendedores de bilhetes de comboio, polícias... e reparo que é sempre um homem que a profere. Claro que numa década de viver em Inglaterra é bem provável que em algum ponto uma mulher que me tenha vendido um café algures me a tenha dito, talvez até muitas vezes. Mas nunca me lembro dessa frase dita numa voz feminina. Admito que é um preconceito de mulher dizer que esta é uma frase para ser dita por um homem.

A outra coisa que causa tensão e instabilidade no poema, e que explica porque é que ele me faz pensar em Tarantino, é a resposta que a narradora imagina dar a este homem, “go to hell,” mas é uma frase que nunca é proferida. E a outra ponta solta do poema é a mulher calada a ler a um canto, com a sua força inexplicável, com o seu “That’s it” de leitora absorta, pronunciado quase no fim do poema, que comunica força à outra mulher. E penso que parece que este poema não muda nada, mas há nele um olhar profundo que denuncia tudo. E uma vez visto o que ele descreve, não é possível deixar de o ver. Denuncia a complacência com que olhamos os lugares-comuns, as nossas baixas expectativas em relação a eles, o facto de que queremos passar por eles incólumes, não respondendo apenas para beber o nosso café em paz (não parece, mas neste café há um eco oblíquo de outro café, um pouco mais mítico, que um poeta português bebe noutro sítio da Europa, o de “Em Creta com o Minotauro”), um tipo de violência quotidiano e intolerável que de tão entranhado deixamos de o ver, tão entranhado que destrói até o outro mais provinciano dos mitos e preconceitos portugueses, o de que lá fora é que é, porque dentro das nossas fronteiras já não há nada a fazer. Exceptuando que esta mulher que entra neste café sai dele e sabe exactamente o que ele significa, e sabe explicar o que é que ele quer dizer, e no fim está menos sozinha porque encontra até a voz da outra mulher.

            O meu café preferido em Londres fica em Monmouth Street. Vou lá normalmente para encontrar-me com uma amiga que gosta de se sentar ali a ler ou a escrevinhar. E nunca entrei neste café, que não é manhoso, nem nunca os meus olhos deram com os desta amiga quando ela os levanta do que está a fazer, sem me lembrar deste poema de Ana Luísa Amaral. Talvez os poetas de quem gostamos continuem vivos no amor que temos aos poemas que deles mais amamos, na forma como vemos o mundo pela lente desses poemas. Podemos perder coisas que nunca nos aconteceram. Sinto uma tristeza indizível de não ter conhecido melhor Ana Luísa Amaral e de agora não a poder levar a beber um café em Monmouth Street. Mas quero crer que ela está agora no céu dos poetas, a beber um café com Emily Dickinson.

O poema pode ser ouvido lido e ouvido aqui na sua voz.

 

Tatiana Faia
Oxford, 7 de Agosto de 2022

 

 

 

Des musiques plus intimes de Coralie Gourdon (voz e interpretação de Roberto Salazar)

Um amigo acabou de escrever uma tese de doutoramento sobre Joseph Brodsky, que eu acabei de ler nos últimos dias. Entre o material que ele discute há um passo de um ensaio chamado “Spoils of War”[1] em que Brodsky fala de um conjunto de postais que uma rapariga lhe ofereceu para o seu aniversário:

 

            They belonged, she said, to her grandmother, who went to Italy for her honeymoon shortly before World War I. There were twelve postcards, in sepia, on poor quality yellowish paper. The reason she gave them to me was that at about that time, I was full of two books by Henri de Regnier I’d just finished; both of them had for their setting Venice in winter: Venice thus was then on my lips…

 

A relação de Brodsky com os postais de Veneza é marcada por outros elementos que aparecem noutros ensaios, a nostalgia pelo ocidente, o exílio, o modo como a cultura – a chamada alta cultura e a cultura muito popular e perecível, como aquela a que pertencem postais – expande a nossa relação com o espaço e com o tempo.

Em Des Musiques Plus Intimes, uma curta-metragem de Coralie Gourdon gravada num pequeno apartamento nos arredores de Paris nos primeiros meses da pandemia, ninguém lê Brodsky e não há postais, mas há um poster de um quadro de Wifredo Lam e um mundo de objectos quotidianos, da frigideira onde o óleo ferve à chave deixada do lado de dentro da porta. A estes opõem-se por vezes planos mais amplos, a amplitude do mar algures no Mediterrâneo, a imensão das plantas que são afinal domésticas. O que é filmado faz-nos pensar no nosso próprio contexto, nas diferenças e nas semelhanças entre as paisagens e os gestos que estão debaixo dos nossos olhos. Há depois poemas, vários poemas, de vários tempos e de vários lugares, de Ovídio a Heiner Muller, de Holderlin a Kavafis, passando por Michaux e Pessoa, que são lidos nas suas línguas originais.

Des musiques plus intimes talvez exista um pouco, na sua forma de narrativa que é estruturada pelos sucessivos dias de uma semana, um poema visual sobre a relação de um leitor com a poesia e por extensão com as línguas em que elas são escritas. É um filme muito breve, mas faz várias coisas. Uma delas é fazer-nos pensar que a poesia nas várias línguas em que é escrita e em que a lemos é uma forma de nostalgia pelos lugares, por diferentes países. Por isso, no início um dos excertos citado é de um poema de Borges, “Al idioma alemán,” e termina-se com um poema de Kaváfis “Desde as Nove.” Des Musiques Plus Intimes é neste sentido um estudo da forma como as línguas e os poemas expandem o nosso mundo e a nossa leitura da realidade. Por outro lado, cada poema é uma espécie de curta-metragem dentro desta curta-metragem e, um pouco à maneira dos rapsodos na antiguidade, as narrativas vão-se adicionando umas às outras, criando nexos de sentido entre si, num diálogo que cria uma espécie de narrativa cumulativa que nos faz pensar em coisas como o que quer dizer solidão e sentido. As palavras de outros, lidas nas línguas de outros, parecem consolar-me, lemos a determinado ponto.

Qualquer coisa neste curto filme imita a solidão do pensamento, as formas como fazemos sentido da realidade nas narrativas dispersas que vamos vivendo, confinados ou não, num olhar muito atento sobre a profundidade da linguagem, enquanto forma onde ao mesmo tempo cabem o exílio e os gestos que nos aproximam dos outros. Há na voz de Roberto de Salazar, cujo rosto nunca é visto por inteiro, qualquer coisa do anonimato dos aedos cujos nomes ficaram esquecidos. Para além de uma encenação do modo como uma biblioteca expande um universo pessoal, e para lá do que o filme tem de tributo a uma biblioteca pessoal, há uma dramatização das formas como os poemas com que vivemos criam sentidos que agem sobre as nossas biografias (é a certas palavras que voltamos e não a outras). Os poemas que são lidos, no entanto, resistem a uma fixação coerente no espaço, no tempo, ou numa identidade. Dizem e repetem, “sou daqui e não sou.”

Se isolássemos um dos muitos diálogos que os poemas lidos criam entre si, podíamos traçar uma linha entre o excerto do poema de Borges mencionado acima a “Gato que brincas na rua” de Fernando Pessoa a “Desde as Nove” de Kavafis. Todos os poemas são de alguma forma sobre identidade. O poema de Borges, de onde sai o verso que dá título ao filme, é em certo sentido sobre a relação entre identidade e a língua que se fala, sobre essa língua enquanto destino:

 

           Mi destino es la lengua castellana,
El bronce de Francisco de Quevedo,
           Pero em la lenta noche caminhada,
           Me exaltan otras músicas más íntimas.

           

Mas, na sequência, é-nos dito que essa música mais íntima é a da nostalgia pela língua alemã. É interessante pensar que o filme resiste a citar a famosa máxima de Pessoa, análoga, pelo menos em aparência e se tomada fora de contexto de “A minha pátria é a língua portuguesa”, para se fixar num poema de Pessoa que é sobre a impossibilidade da fixação numa identidade definida, “Gato que brincas na rua.” A comparação que parece ser com o gato, e que nesse sentido vem com um eco do Mestre Caeiro, termina com uma constatação de que a identidade resiste a fixações, é elusiva, tem, como o bronze de Francisco de Quevedo, a sua própria profundidade. Brincando um pouco, de alguma forma, é um pouco como se o plano do filme em que se filma o gato na varanda, enroscado dentro do vaso, revelasse uma coisa que talvez tivesse sido sugerida a Pessoa e que nos tinha escapado das muitas vezes que lemos este poema, que o próprio poema parece querer contrariar no contraste que encena entre o narrador e o gato, que o lado elusivo da identidade é afinal análogo ao carácter imperscrutável dos gatos, ainda que estes tenham os seus instintos gerais e sintam só o que sentem.  

“Desde as Nove” de Kaváfis, é um dos últimos poemas a ser lido. Datado de 1917 é um poema que se move da descrição de coisas interiores, a casa, o candeeiro aceso, a memória do prazer físico do corpo, para o exterior, para centros de cidades, cafés, teatros. É sobre um sujeito na paisagem e sobre a passagem do tempo por ele, sobre a sua vertiginosa aceleração, que é quase impercetível. Lido no contexto desta curta-metragem, torna-se talvez não tanto um poema um pouco sobre a fixação da identidade nas coisas, quanto sobre a permanência do que é exterior em nós, sobre o que a efemeridade dessas trocas com o exterior aguça na nossa percepção até chegar ao ponto, que é como um aviso, em que nos fala da nossa própria efemeridade no tempo.

Talvez a última revelação seja, como se diz nos últimos versos que ouvimos, entrecortados com o som e as imagens da chuva, saber o que já sabemos, mas Des Musiques Plus Intimes talvez sugira que, como os poemas que vivem connosco, é preciso enumerar estas coisas com cuidado.  


[1] Coligido em On Grief and Reason. Essays, Penguin, London, 1995.

Manuel Resende (1948-2020)

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Manuel Resende faleceu na semana passada, a 29 de Janeiro de 2020. Poeta, tradutor e um dos mais generosos homens de letras com quem tive a alegria de me cruzar. Servem estas breves linhas para o recordar e lamentar o seu desaparecimento. A primeira vez que me cruzei com Manuel Resende foi em princípios de 2011. Tinha eu então o projecto, um pouco estranho, mas que reuniu à sua volta algumas pessoas que estavam na altura a trabalhar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, gente na chamada categoria de jovens investigadores, de trazer à faculdade algumas pessoas para passarem um dia a falar de uma literatura de que raramente se fala em Portugal, mas que tantas coisas tem em comum com a nossa, o que não devia ser motivo para explicar por que é que a devemos ler (o motivo para ler qualquer tipo de literatura não deve ser tanto caso para que nos vejamos ao espelho, mas por curiosidade e porque, como dizia Susan Sontag em Sob o Signo de Saturno, ler e escrever são formas de felicidade, se não de alegria), mas de alguma forma serve para explicar que se tratava, e trata, de uma lacuna, uma coisa em falta. Nesse Inverno de 2011, eu achava que o que faltava à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa era falar de literatura grega moderna, e mais especificamente dos seus poetas. Ora, porque o Centro de Estudos Clássicos dessa universidade é um lugar aberto e generoso, deram-nos espaço e apoio institucional para organizar a coisa. Sendo isto Portugal, apoio institucional não quer dizer pagar seja a quem for pelo seu tempo e para falar desse assunto, mas antes que nos foi cedido algum espaço na Faculdade, bem como o nome da instituição para explicar o nosso contacto às pessoas que queríamos convidar. Talvez porque fôssemos jovens investigadores, ou porque a literatura grega moderna é coisa que interessa a pouca gente, quase toda a gente que contactámos, mesmo os tradutores de autores gregos, nos disseram que não. Tivemos uma imensa dificuldade em reunir um painel e a dada altura começámos a distribuir os autores de quem queríamos falar por alguns alunos e jovens investigadores. Mas, ainda assim, faltava-nos alguém que de facto entendesse verdadeiramente alguma coisa de literatura grega. Em desespero de causa e tendo recebido a nega de toda a gente que sobre esses autores poderia ter falado, resolvi ser megalómana e enviar um email à Assírio e Alvim, pedindo-lhes o contacto de alguém que não conhecia, Manuel Resende, o tradutor de Axion Esti, a obra-prima de Odysseas Elytis, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1973. A editora cedeu-me o email, mas eu, esperando que se repetisse o não com um longo atraso na resposta ao email, como sucedera com outros convidados, pedi a um colega para se ir preparando para falar de Elytis enquanto esperávamos a resposta de Manuel Resende. Lá enviei o email. A resposta veio cinco minutos depois. Não só Manuel Resende aceitou vir até à Faculdade falar de Odysseas Elytis, enviou-me imediatamente, na resposta, o texto que pretendia ler, bem como uma tradução, inédita em livro, de um poema de Elytis que eu nunca lera, Canto Heróico e Lamento pela morte do Segundo Tenente da Albânia. Hoje escrevo este texto e, apesar de nunca ter sido particularmente próxima de Manuel Resende (mas dávamo-nos bem e de vez em quando correspondíamo-nos com dúvidas de grego antigo e moderno), sinto-me triste para lá do que se pode explicar com palavras e com os olhos cheios de lágrimas. Na altura, perante a resposta tão entusiasta e generosa de Manuel Resende, quando todos os outros nomes nos mandaram passear, fiquei, por uma parvoíce qualquer que me escapa, um pouco preocupada com as expectativas que este pequeno evento pudesse gerar num tradutor de renome. Dizia-me ele no email que tinha o texto pronto porque estava há uma década à espera de alguém na Faculdade de Letras que o convidasse a ir falar de Elytis. Manuel Resende veio, sentou-se connosco, leu do Áxion Esti, do Canto Heróico, do Monograma, podia ter lido da Maria Neféli, outra das obras-primas desse poeta maior do cânone europeu, lembrou-nos em toda aquela conversa que ler poesia e olhar para a vida dos poetas é uma maneira de mergulhar em profundidade não só na beleza do mundo mas num vasto repositório da nossa humanidade, que, parafraseando um poema de Jorge de Sena, pode ser difícil de reunir e manter. Manuel Resende, a ler Canto Heróico e Lamento pela morte do Segundo Tenente da Albânia, fez pela audiência naquele anfiteatro o que alguém que não confunde o que seja falar de poesia com falar de retórica deve fazer por nós, deixou-nos profundamente comovidos, e alguns de nós lavados em lágrimas. Quero crer que, por estas horas, Manuel Resende está no céu dos literatos, com Elytis, Kavafis, Seferis, Ritsos, e tantos outros escritores que ele traduziu, pacientemente a clarificar as suas dúvidas de tradução, para garantir que aqueles de nós que o queiram, poderão ler esses poetas que seriam de outra forma inacessíveis. Só nós é que estamos mais pobres, mas, pelo menos eu, agradecida do fundo do coração.

Muitas das traduções de Manuel Resende do grego moderno seguem inéditas, como suspeito que tantas outras coisas que ele foi fazendo o estão, coisas feitas como a tradução e a apresentação dos textos de Elytis, com amor, uma impecável qualidade, e por generosidade e cuidado, e seria bom, se por uma vez, não caíssemos no marasmo da indiferença que vai tolhendo a nossa cultura, que é como quem diz empobrecendo o modo como estamos vivos, e fôssemos pondo esses textos cá para fora. 

Partilho aqui o link para as traduções e poemas de Manuel Resende que fomos publicando na Enfermaria ao longo do tempo.

Tatiana Faia

Oxford, 2 de Fevereiro de 2020

Victor Heringer (1988-2018)

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A notícia mais triste de escrever: Victor Heringer, autor da Enfermaria 6, faleceu ontem no Rio de Janeiro. Entre os principais livros, contam-se Automatógrafo (2011, poesia), vencedor do prémio Jabuti pelo seu primeiro romance, Glória (2012), e um brilhante segundo romance, O Amor dos Homens Avulsos (2016). Victor Heringer era um dos jovens escritores mais talentosos da língua portuguesa. Era também, desde uma idade precoce, um verdadeiro homem de letras. Não temos palavras para a tristeza de assinar esta nota. Foi uma alegria e um privilégio conhecê-lo e editá-lo. Em jeito de homenagem, publicamos aqui, de novo, o seu texto para o nosso Caderno 4. Modos de Escrever, em que Victor Heringer fala da sua oficina e do que significa para ele escrever. Os outros textos que ele publicou na Enfermaria estão disponíveis clickando na etiqueta. Até sempre, Victor!


Sobre escrever, segundo métodos diversos

Victor Heringer*

 

Método rotineiro

Quando perguntado sobre minha rotina de escritor – uma pergunta bastante comum –, respondo com uma ladainha quase sempre restrita aos seguintes tópicos:

(a) não consigo estabelecer horários ou metas empresariais para escrever (5 páginas de 9h às 13h diariamente, por exemplo);
(b) reescrevo muito (quatro, cinco vezes o mesmo livro);
(c) cada livro ou texto demanda um processo diferente (a repetição mata a alegria formal).

Método prescritivo

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Método ecfrástico

Há uma fotografia tirada por Larry Towell em Manágua, capital da Nicarágua, no ano de 1984. Uma mulher, diante de um tanque de lavar roupa, cospe em um papagaio. A foto, em branco e preto, sempre me pareceu uma bela imagem-amuleto para pensar o trabalho do escritor. A boca humana, capaz de certa originalidade quando se empenha, versus o papagaio, um animal ele-mesmo o mecanismo orgânico do clichê. O cuspe, um ato agressivo e repulsivo. Minha hipótese inicial: o artista é o inimigo do clichê, da frase-feita, do previsível. Como escritor-leitor, abomino o previsível, inclusive o imprevisível previsível, isto é, o cálculo canhestro do inesperável.

Mas a legenda da foto de Towell, que só vim a ler anos depois de me deparar com a imagem, explica que era verão escorchante em Manágua. A mulher cospe no papagaio para aliviar o calor do bichano. Trata-se, portanto, de um ato de carinho. Minha hipótese matizada: o artista é inimigo, mas também amante do clichê. Sob perigo de se tornar incompreensível – oposto absoluto do chavão –, deve-se achegar ao lugar-comum (não só no sentido de trivialidade, mas também no de comunidade) e refrescá-lo.

Nessa dança, no jogo de distâncias, cada autor tem seu estilo.

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Método fisiológico

Nasceu-me um calombo no dorso do punho, por muito digitar e usar o mouse. Isso a literatura me deu. Horas de trabalho solitário prejudicaram o refinamento social. O ciclo de sono é uma bagunça. O regime alimentar depende do dinheiro, que não vem constante. Ganhei duas hérnias de disco, causadas pela alternância entre sedentarismo prolongado e ímpetos de atividade física intensa (subir montanhas, correr maratonas, mudar de cidades). As viagens, contraparte geográfica da busca formal, me gastaram as pernas e as raízes. E como diz Pablo Neruda naquele filme, enquanto abocanha uma cebola, os escritores são barrigudos, muito melhor é ser carteiro. 

Método Harold Bloom

Machado de Assis e Manuel Bandeira são meus dois pais. As obras me influenciam como autor, mas sobretudo ajudaram a forjar minha identidade, que aos poucos (esta é a esperança do ficcionista) vai se diluindo nos meus próprios livros, até que eu possa ser ninguém em paz.

Machado me deu os olhos, Bandeira me deu o coração.

A linhagem machadiana não é difícil de acompanhar: Laurence Sterne, Luciano de Samósata, Cervantes, Schlegel, Unamuno, os irônicos. Já a virtude de Bandeira é a ternura, e essa aprendizagem é feita corpo a corpo.

Dorival Caymmi me deu a utopia praieira.

Georges Perec e Donald Barthelme me deram o senso de alegria formal. Valêncio Xavier, Wlademir Dias-Pino, os concretistas brasileiros, Letícia Parente, W.G. Sebald e Arthur Bispo do Rosário me ensinaram a ser um escritor promíscuo. Toda linguagem me interessa. A fotografia, o cinema, o desenho, a música, a performance, todas as práticas e códigos contaminam o trabalho.

Lydia Davis, Cesar Aira, Beatriz Sarlo, Kawabata, Octavio Paz, Cioran, Gombrowicz, Tabucchi, Marília Garcia, Eduardo Coutinho, Calvino, Paul Salopek, Gaudí, Violeta Parra, Murilo Mendes, Hilda Hilst, Nelson Cavaquinho, Travadinha, Leonardo Fróes, Francesca Woodman, Lucian Freud, Vivian Maier, Malevich, Benjamin, Nanni Moretti, Guignard, Chris Marker, Cartola, Orson Welles, Kobayashi Kiyochika, Pedro Cornas, o Quinteto Armorial µ

Método aforístico-ontológico

(1) A escrita é um processo de incorporação, como um transe mediúnico[1] ralentado no longo dos anos.

(2) Mais do que se tornar ninguém, escrever é se tornar qualquer um. Para o escritor, não há a confortável ilusão da identidade, só as ansiedades das mil personalidades.

(3) A ficção – o conceito, seus tentáculos – domina tudo, a ponto de despertar a patética vontade de me transformar em obra de arte.

Método apocalíptico

O fim está próximo. Sempre esteve.

Foi sempre contra a morte que cantamos.

Só o fim nos une.  

Um minimanifesto — Salvar tudo, lembrar tudo o que fizemos. A arte no Antropoceno é o domínio público. Amar as digitais engorduradas que deixamos nos objetos, todos os fonemas, todos os ritmos, todos os amarelos no papel-jornal, todos os álbuns de família miúda. Tudo o que foi nosso nos interessa. Amar: renovar significado. É uma tarefa impossível, falta tempo para tanto: aí reside a nossa tragédia.

Contra o varejão das almas, do coração e da cabeça!

Método alegre

A uma ex-namorada com quem planejava passar o restante da vida, disse: quando eu morrer, se alguém perguntar, diga que eu era alegre escrevendo. Sou feliz escrevendo, assim como só sou feliz em viagem, em trânsito. Deslocável. A alegria de encontrar um novo modo de dizer, um novo processo textual ou um novo personagem é a mesma de descobrir uma mesquita num beco impronunciável, um amigo de albergue ou uma trilha de montanha onde torcer o tornozelo.

Eu tinha certeza de que morreria antes dela.

Estamos vivos.


* Victor Heringer nasceu no Rio de Janeiro em 1988. Prosador, poeta e ensaísta, publicou os romances O amor dos homens avulsos e Glória (prêmio Jabuti 2013), além do volume de poemas automatógrafo. Escreve crônicas regularmente para a revista Pessoa.

[1] Para uma reflexão mais detida sobre a relação escrita/incorporação/corpo/transe, no contexto dos ritos mediúnicos, v. entrevista dada ao Caderno de Ideias do Instituto Cultural Freud, do Rio de Janeiro:

CADERNO | Você considera que uma relação com o seu corpo real também se cria a partir daí, no sentido de uma transformação perceptiva? 

Victor Heringer | Sim, vou dar um exemplo ligado ao transe mediúnico, que se relaciona, para mim, com a incorporação de que falei acima. O gestual característico dos pretos velhos é bem conhecido: as costas encurvadas, os movimentos lentos, os passos arrastados e a voz quebradiça não são exatamente "atuados", no sentido cabotino de fingimento. O cavalo, que baixa a entidade, sente o peso nas costas, a dificuldade no andar e as cordas vocais deterioradas – embora, num fiapinho de consciência, saiba que não é assim. Isso ocorre com certos atores, eu imagino. E também se dá com alguns escritores, na fala, nos atalhos mentais e às vezes até mesmo na dimensão mais imediata do corpo.

(A entrevista completa está disponível on-line: http://bit.ly/2gJioLu)