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Cabeça de são filipe, Leonardo, ca.1495

Para a Pazinha

na casa de Frederico Madureira
a biblioteca
ficava no andar de baixo

: Frederico não se importa
que eu vá ao quarto dos livros?
: vai
e ao fundo
na prateleira do meio
da estante mais encostada
à janela do jardim
hás-de encontrar
um álbum reproduzindo
desenhos de Leonardo
procura o estudo para S.Filipe

e assim eu fiz e lá estava
o olhar arrebatado
a cabeleira em anéis
mas o olhar
o olhar

aquele olhar
a eternidade transposta
e os pássaros cantando no jardim
e a luz do sol no jardim
e a casa contendo tudo
a casa centro de tudo
e aonde o paraíso?

e o mar foi-me levando
divaguei
e o paraíso
sempre imperfeito
à distância
e a vida inteira cheia de distância
e tudo o que a distância desprendeu

mas algo fica do que já não coube
e a isso chama-se a vida por contar
e tudo conta na vida
a casa de Frederico
a biblioteca
o jardim
a expressão do olhar de S. Filipe

Tininha

Tininha diz ao papá: «Papá, que é isto? A Via Láctea os numinosos espaços nocturnos já não me surpreendem! Parecem só um tecto de sala, que a tia de quem menos gosto decorou. Papá, que é isto?» «Ó Tininha! É lavar a cara com água fria! É partir para uma voluptuosa volta — de mota, no mato.» Tininha acatou e atestou: deu de caras com a surpresa do bicho. O bicho — a Via Láctea os numinosos espaços nocturnos — ferida-acordeão que o sopro de Tininha agrava ou mitiga. Tininha viu: a noite cicatriza em dia, o dia cicatriza em noite.

De Canto da Alforreca, Douda Correria, 2016

Soneto falso

Acordei com uma forma ambígua
entre o duche a escolha da roupa
e o espelho do guarda roupa
o prazer de não saber quem sou 

ao abotoar-me sei que estou na cena iii
do meu ato a palavra contém todos
os géneros mas os gritos ecoam ao retardador 

penso nos polícias (ganhando pouco mais
que o salário mínimo) em pasolini
e em quem trabalha como pode um corpo
esvaziar-se de vida às mãos dos outros
sem quase nada por tão pouco