As coisas em letra garrafal

Daquela vez, a noite tinha descido com golpes de calor e eu logo lhe estranhei a desordem. É suposto as noites serem frias e desertas, um pouco duras e quase sempre dirigidas a Norte. Lembrei-me então desse tempo meio embaraçado, sem idade, as coisas de letra garrafal que a vida dá e a vida tira.

Nunca lhe vi o futuro, ele era constantemente urgente e intraduzível, aos arranques, mas eu pensava que o futuro se fazia assim, uma camada sobre outra camada, por vezes à revelia da ordem, por vezes a direito. Tinha organizado o mundo em conceitos: havia os conceitos e havia os não-conceitos, havia o céu e havia o chão, o longe e o perto, e por adiante. Debatia-me desde sempre com os a-conceitos, o berro da proximidade - tinha jeito para esses, essa biografia de ponto e sem nome, às vezes sem propriedade sequer. Que dizer? Era o hábito, essas regras de cabelo farto. Aprendi depois que há muitas outras regras – há o futuro, o presente e até ausências de futuro que podem viver continuamente em tempo presente.

Nunca lhe perguntei o que pensava sobre isso. Remexia no café, parava e via-lhe os olhos curtos e cansados, talvez pelo cheiro das coisas esquecidas, e, no entanto reconhecia-lhe a razão em dar significado a essas regras que não conhecia.

Aprendi-lhe o gosto de ir sem certeza de nada, já a Clarice dizia que certeza certeza só mesmo a dos amigos do peito. Às quartas comentávamos todos juntos e entre o travo da cerveja que há pressa nas vozes dos outros, matemática, até tecnologia em tudo o que devia vir da boca (E se for para ser irónica que o seja, que é pois o mundo?) O professor cedia ao silêncio logo após uns minutos e via-se que ficava a tricota-lo, como se a cidade que tinha escolhido para amar os estudantes lhe doesse um bocado. (Penso que era mais isto de estarmos em expansão, temos este aspecto meio inesperado e ansioso apesar da fotografia só captar algumas partes; entretanto há coisas que faltam, elas também em letras garrafais, sem que artista nenhum tenha conseguido esboçar bem. Da forma da falta, será quadrada, cilíndrica, em perpendicular?) Depois regressava da sonolência e re-embrenhava no ritmo.

Parecia que tinha saído de uma rua e voltava noutra mas no fundo sabia que nunca se sai das mesmas ruas, dão-se umas voltas e depois regressa-se ao mesmo, só que se está mais preparado para as aceitar. 

 

[ver perfil de Leonor]