Norman Lewis em Nápoles

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para o João Coles

Em Novembro de 2017, a BBC emitiu um documentário sobre o tempo que o escritor de viagens inglês Norman Lewis passou em Nápoles em 1944, o último ano da guerra, ao serviço do exército britânico. Baseado no livro de Lewis, Naples ’44, o documentário da BBC é narrado por Benedict Cumberbatch e uma das suas primeiras sequências, que há-de ser uma das primeiras coisas narradas no livro, é a descrição da chegada de Lewis aos templos em Paestum, à espera de fogo das tropas inimigas, de como ele e um bando de jovens soldados se abrigaram por entre as imensas colunas dessas velhas ruínas, que ali estavam há séculos e de como então se torna difícil de escapar a uma impressão de paz, de civilização.

O documentário, que já não está disponível no site da BBC, mas por aí há-de andar em DVD ou streaming, está cheio de imagens de filmes antigos e de clips de arquivo. Está também cheio das histórias dos encontros que Lewis teve com as pessoas que viviam na cidade, dos soldados americanos aliados à comovente aparição de duas orfãs cegas a mendigar num restaurante.

Em 1944, Nápoles era não só uma cidade ameaçada por bombardeamentos inimigos – a dada altura todo um quarteirão da cidade tem de ser evacuado porque se pensa que os alemães o haviam armadilhado –, mas também pelos terramotos em parte causados pela presença do Vesúvio. E, no entanto, apesar de toda a destruição, as pessoas continuavam a viver, continuavam a tentar. Como é horrível a guerra, é um lugar-comum, mas nada é tão verdadeiro: como o exército inimigo destruiu a cidade, assassinou mulheres e crianças, como o exército de libertação permitiu que a corrupção florescesse e forçou uma parte considerável das mulheres da cidade (então 1/3 da população) à prostituição. O quão resilientes e cheios de recursos eram os napolitanos. A meio de tudo isto, dá-se uma erupção do Vesúvio que muda a face da montanha para sempre.

Há duas coisas que importa dizer acerca deste documentário: a primeira é que a capacidade de Norman Lewis para a empatia é impressionante. Lewis era alguém tão discreto que costumava dizer que podia entrar e sair de uma sala sem ninguém reparar que ele lá tinha estado. A outra coisa de que este documentário nos lembra é que o mundo sem gentileza é um lugar avariado, que não funciona, que é exactamente a capacidade das pessoas para serem gentis uma das coisas que fazem estar vivo valer a pena. 

Nápoles é uma cidade com mais de três mil anos, caótica, desorganizada, suja, mas, argumenta quem dela gosta, nada difícil de amar. Atravessando a Piazza Dante em direcção ao interior do quarteirão velho, bem para dentro do coração da confusão, recusando avançar em linha recta em direcção à ampla e bem mais organizada Piazza dei Plebiscito, assalta-nos a impressão de um mundo misterioso, violento, ao mesmo tempo velho, novo, cosmopolita e empobrecido, mas sempre gregário, de gente reservada e aberta, ao mesmo tempo generosa e grave. Em Nápoles, somos capazes de dar por nós a amar o mundo mutilado. É nesse sentido que gostar de Nápoles, que amar a história de todas as cidades que amamos, nos ajuda a viver.

Jogar ténis com Caravaggio

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Quem passear pelas salas do Museu Capodimonte em Nápoles não tem muito por onde escapar a uma cacofonia de arte sacra nas galerias principais. Alguma dela, há que reconhecê-lo, talvez não merecesse ter sobrevivido ao teste do tempo, quanto mais adornar as paredes de um museu. Antes de se entusiasmar demasiado com a possibilidade de um encontro com tesouros injustamente esquecidos, admita abertamente a possibilidade de que certas coisas foram e são esquecidas por boas razões. Este argumento continua a ser válido mesmo se acolhermos sem polémica um outro: de que há um valor histórico na arte, que alguns quadros desinteressantes testemunham pelo menos esse valor: a passagem do tempo que deu lugar a formas mais interessantes, a expressões mais desafiantes dos mesmos temas.

Tomados nos seus contextos, a presença destes quadros nestas salas é relevante para esclarecer o que em determinada época terá escapado às suas convenções, para nos deixar apreciar melhor a arte que excede o seu tempo. Acresce a isto que há pequenas jóias a serem descobertas no trabalho de poetas muito menores. Por exemplo, a beleza dos anjos que se abraçam nas Sete obras de Misericórdia de Caravaggio, o quadro monumental alojado desde sempre na igreja do Pio Monte della Misericordia, no quarteirão velho de Nápoles, a beleza desses anjos é muito mais evidente depois de oitenta pintores de sacristia martelarem em nós a culpa que o fiel deve sentir pelo sacrifício do Cristo em sucessivamente desinspiradas representações da crucificação, ou da descida da cruz, ou da positivamente anacrónica representação de respeitáveis cardeais metidos a martelo na cena da crucificação. As sete obras... é um dos três quartos da parte final da vida de Caravaggio, produzidos nesta venerável cidade depois de ele ter fugido de Roma por ter assassinado um homem (depois de uma altercação durante um jogo de ténis)[1].

O melhor que alguns quadros mais banais fazem por nós é darem-nos a noção de que todo o sentimento de apocalipse eminente de sucessivas gerações expostas a uma crise económica e política que se prolongou durante séculos acaba por trazer à superfície algo de bem mais valioso, algo que tem a sua expressão mais acabada em obras como este quadro de Caravaggio. 

Há um sentido do teatral que não se confunde em Caravaggio com um sentido do espectáculo, ou com o sublinhar repetitivo - sem possibilidade de equívocos - de uma mensagem monótona de implicações morais e rituais óbvias. Os fundos invariavelmente negros dos quadros de Caravaggio, o chiaroscuro que coloca as figuras humanas em relevo enfatiza expressões, movimentos, isola a beleza, a fealdade, o terror, ou a ternura de certos momentos. O modo como uma perna ou um braço é flectido devolve certeza, angústia, desconforto, dor, sensualidade, divertimento. Nas Sete Obras de Misericórdia dois anjos entrelaçam-se ao alto para sustentar a Virgem e o Menino, mas nós vemos apenas a sua queda eminente, a sua forma de precipitação que instaura o desequilíbrio, sublinha o caos em que actos de misericórdia afinal se desenrolam. Quase que não parece haver uma reconciliação possível entre tudo o que este quadro tenta representar. Uma unidade. O que é expressividade? O olhar sobre determinada coisa que pudesse corrigir uma falha? Emendar, ao comunicar-se, o golpe fundo e angustiante de uma queda a toda a velocidade em direcção ao nada? Nós hoje não chamaríamos a isso misericórdia, mas sabemos que a luz recairia ainda sobre as costas nuas da figura no canto inferior esquerdo, sobre a qual é lançado um manto. Não o que é a expressividade, então. Mas antes a expressividade das figuras neste quadro de Caravaggio encontra a falha no olhar do observador, o eco de qualquer coisa que fazia falta. Se a arte contém algo que salva é algo de temporário e intrinsecamente utilitário, é o que este quadro parece sugerir. A bondade enquanto conceito abstracto, enquanto alegoria, são afinal alguns gestos praticados continuamente.

O caos de Caravaggio depende do nosso silêncio. O que acontece entre o momento de olhar e entender é algo no mesmo comprimento de onda de lançar um fósforo à escuridão. Antes de este se extinguir, a profundidade do que acontece ilumina um continente, mas não dura, o mundo continua lá fora. Não dura mas fica connosco, estas linhas rabiscadas à pressa tentam afinal dar conta da vertigem dessa viagem. O que é ao certo isso? Uma imagem ficar muito tempo connosco? Acender-se inesperadamente muitos anos depois, noutro contexto, o seu rasto luminoso unindo um ponto no passado a outro no presente, dando-nos a ilusão, sem neutralidade nenhuma afinal, de que há alguma coerência para esta coisa que sou eu. Enquanto levantamos a cabeça, antes de sairmos de Pio Monte della Misericordia, lembramo-nos de uns versos de Geoffrey Hill que podiam acompanhar este quadro: Consensual angel spinning this word’s thread/ he descends/ and light-sensitive darkness/ follows him down (de Psalms of Assize).


[1] “Only certain details of the circumstances surrounding the bloody quarrel can be reconstructed from criminal records. It involved four opponents on both sides and appears to have erupted during a pallacorda match, a ball game not unlike tennis. But this simply turned into an occasion to settle outstanding scores... Not insignificant was the fact that the artist and his adversary had both wooed the courtesan Fillide Melandroni.” Sebastian Schutze, Caravaggio. The Complete Works. (Taschen, 2015, 166).