Entre mim e o mundo

Tu existes. Tu Importas. Tu tens valor. Tens todo o direito de usar um gorro, de ouvir música tão alta quanto quiseres. Tens todo o direito de seres tu. E ninguém deverá impedir-te de seres tu. Tens de ser tu. E nunca podes ter medo de seres tu.

Visto o vídeo e lida a citação, peguem nos auriculares e carreguem no play.

Esta lista será a vossa companhia ideal para a leitura do livro e, caso decidam arriscar, a leitura deste pequeno apontamento sobre uma das grandes obras literárias dos anos mais recentes.

 

Imaginem nascer e crescer num país onde sabiam à partida, pelo vosso mais básico instinto e por toda a cultura que vos rodeava, que o tom de pele seria decisivo para a vossa sobrevivência ou a vossa morte. Foi nessa realidade que Ta-Nahisi Coates cresceu e tomou nas mãos o seu destino, recusando render-se às evidências que o apontavam como apenas mais um na estatística.

Escritor, jornalista, professor, escreveu Entre Mim e o Mundo (Ítaca, 2016) para tentar explicar ao filho adolescente o que significa ser negro nos EUA de hoje. A resposta não é fácil, feliz ou maniqueísta, separando o Mal e o Bem com a facilidade irresponsável do cinema americano que vende bilhetes.

Ser negro nos EUA é um perigo de morte e ele sentiu-o por diversas ocasiões, inclusivé na presença do filho.

Digo-te agora que a questão de saber como se deve viver dentro de um corpo negro (...) é a questão da minha vida, e descobri que a busca incitada por esta questão em última instância se responde a si mesma.
Quando aceitei tanto o caos da história como o facto do meu fim total, vi-me livre para finalmente considerar como querida viver – em particular como viver livremente neste corpo negro. É uma questão profunda, pois a América vê-se como obra de Deus, mas o corpo negro é a prova mais clara de que a América é obra dos homens.” “A questão não tem resposta, o que não a torna fútil. A maior recompensa desta interrogação constante, do confronto com a brutalidade do meu país, consiste em ter-me libertado de fantasmas e em ter-me fortalecido contra o terror puro da perda do corpo.

Empatia. O ingrediente secreto das vidas e das literaturas que contam. Sobrevalorizada ou essencial à sobrevivência? Será ainda relevante na sociedade de hoje, sustentada por uma rede de relações artificialmente mediadas? E perante a sua ausência, valerá a pena sustentar as mentiras tantas vezes ditas, até que se tornem verdade? Valerá a pena continuar a lutar, pacifica e resilientemente, esperando que cesse a injustiça e o ataque ao que de mais fundamental existe na condição humana?

A resposta cabal de Ta-Nahisi Coates é N Ã O.

Natural da Baltimore escalpelizada na seminal série The Wire, o escritor serve-se da sua obra, súmula de registo biográfico e diarístico, a espaços jornalístico e intimista, para detalhar a origem desta dissidência face ao discurso conciliador, de resistência pacífica, preconizado por Martin Luther King, e a preferência pelo contemporâneo e iconoclasta Malcolm X.

A sua argumentação tem por base a sua existência, no que acaba por se traduzir num inortodoxo bildungsroman.

Seguindo a herança familiar que lhe foi inculcada por pais e avós, a descoberta e fortalecimento das suas bases identitárias e mundividência é feita através do questionamento constante.

Desde cedo, percebe que a formulação das perguntas e o caminho para o seu esclarecimento são infinitamente mais importantes e formativas do que as respostas. A sua evolução e dialéctica com o Mundo são sempre precedidas ou complementadas por este artifício, com as perguntas a crescerem em abrangência e profundidade, em paralelo com o seu auto e heteroconhecimento.

Parecia-me agora essencial interrogar incessantemente as histórias que as escolas nos contavam. (...) Levei estas perguntas ao meu pai, que quase sempre se recusava a dar uma resposta e em vez disso me sugeria mais livros. A minha mãe e o meu pai estavam sempre a afastar-nos de respostas em segunda mão – mesmo daquelas em que eles próprios acreditavam. Não sei se alguma vez encontrei respostas minhas que fossem satisfatórias. Mas, de cada vez que as formulo, a pergunta torna-se mais refinada.

Com uma infância e juventude presa entre as ruas e a escola, nunca confiou no formato institucional da educação que lhe era disponibilizada, nem quando chegou ao ensino superior na Universidade de Howard (a sua amada Meca) onde, apesar de ter encontrado uma casa, escapava às aulas para se perder na biblioteca e estudar aquilo que mais lhe interessava.

Comecei a ver as ruas e as escolas como armas do mesmo monstro. Umas estavam investidas com o poder oficial do Estado, ao passo que as outras tinham a sua sanção implícita. Mas as armas de umas e de outras eram o medo e a violência. Falha nas ruas e os gangues apanhar-te-ão quando deres um passo em falso e reclamarão o teu corpo. Falha nas escolas e serás suspenso e enviado de volta para essas mesmas ruas, onde o teu corpo será reclamado

A natureza profundamente pessimista (realista, dirão alguns), contenciosa e insatisfeita do seu discurso narrativo, paradoxalmente transforma “Entre Mim e o Mundo” numa obra de improvável cariz filosófico, no sentido mais clássico do conceito. A maiêutica que Sócrates cunhou e Platão eternizou na palavra escrita, surgem aqui como fundamentais.

A digressão dialógica e argumentativa em forma de questionamento, sem dar a resposta cabal ao problema inicialmente formulado, supera-o e por vezes subverte-o, convertendo-o em mero pretexto para debater o que de essencial oculta a sua particularidade.

Embora “Entre Mim e o Mundo” seja uma longa carta ao seu amado filho, poderia facilmente transformar-se num diálogo, sem que o sentido da obra se perdesse.

O seu eixo central é a identidade.

Mais de seis décadas depois de Ralph Ellison (com o fantástico Invisible Man) ter desbravado o caminho para que a negritude nos EUA fosse problematizada com a merecida elevação, Ta-Nehisi Coates torna todo este percurso mais pessoal e pungente, perante o retrocesso a que os direitos dos negros americanos, tão arduamente conquistados desde os anos 60 do século passado, têm sofrido nos últimos anos.

Com o nascimento do seu filho Samori, momento em que a vida deixou de ser só “sua”, a urgência e o inevitável temor pelo perecimento do seu corpo e dos seus amados torna-se ainda mais premente. Por toda a obra, relembra-nos que todo o discurso é vão perante a imponderabilidade do momento ou local errado, do gesto irreflectido, da palavra descuidada.

Com o leitor estabelece-se uma proximidade cúmplice, como se assistissemos, por um vidro baço que nos oculta, à história de Ta-Nehisi e, por intermédio da sua escrita, vislumbrassemos desassombradamente o que significa ser negro nos EUA de hoje.

Contudo, o principal destinatário (e simultaneamente cenário e objecto de análise) é a federação dos EUA, com o seu tão contraditório e eternamente adiado “Sonho” excepcionalista da “city upon a hill”, que propositadamente exclui os negros e os expõe ao perigo constante, apesar de deles se ter servido como combustível para o seu próprio progresso.

Toda a minha vida assisti a esse sonho. É um sonho de casas perfeitas e relvados prazenteiros. (...) E por muito tempo quis escapar para dentro do Sonho, (...) Mas essa possibilidade nunca existiu, por que o Sonho assenta nas nossas costas (...) é feito com os nossos corpos.
Pouquíssimos americanos proclamarão directamente que os negros devem ser entregues às ruas. Mas um grande número de americanos fará tudo ao seu alcance para preservar o Sonho. Ninguém proclamará directamente que as escoals foram concebidas para santificar o fracasso e a destruição. Mas um grande número de educadores falou de «responsabilidade pessoal» num país criado e sustentado por uma irresponsabilidade criminosa. O porpósito desta linguagem de «intenção» e «responsabilidade pessoal» é o de garantir uma vasta exoneração.
No início da Guerra Civil, os nossos corpos roubados valiam quatro mil milhões de dólares, mais do que toda a indústria americana, todas as ferrovias, oficinas e fábricas americanas combinadas, e a principal mercadoria que os nossos corpos roubados produziam, o algodão, era a principalexportação da América.(...)É este o motivo da grande guerra. Não é segredo.

Sobre cada trecho pesa o temor, como se todas as páginas fossem irrelevantes perante uma força que cada negro norte-americano reconhece como extrínseca à sua vontade e intrínseca à sua condição e, como tal, irremediável e inamovível, embora não necessariamente indestrutível ou irreformável.

O tom do discurso é duro e intrangisente, mas sempre a coerente e realista, escapando aos estereótipos linguísticos e sociológicos.

Concomitantemente ao seu próprio desenvolvimento enquanto homem e cidadão, assistimos à maturação da sua mente, aos desafios colocados ao seu auto-conhecimento.

"How long?Not long, because the arc of the moral universe is long, but it bends toward justice."Assim discursava MLK, em Montgomery, Alabama, depois de terminada a marcha desde Selma a 25 de MArço de 1965, que teve como consequência a extensão do direito de voto aos negros nesse mesmo ano.[i]

Mas o medo, décadas depois, mantém-se intenso, entorpecedor e constante, em casa e fora dela. A música e a moda, presentes em qualquer esquina de Baltimore, “a sua armadura contra o mundo”, eram um refúgio, reclamando intensamente essa identidade, corpo e mente, para largos milhares de almas que se viam esbulhados desses e de outros traços essenciais.

A Morte inescapável,eternamente presente e passada, surge nos lugares vazios à mesa ou nos retratos recentes cujos gestos e sorrisos se dissolvem em espectros.

“Ou lhe bato eu ou lhe bate a polícia”, dizia o pai. A violência era o baptismo para o Mundo no seio familiar, como um rito de passagem e preparação para a possibilidade iminente da perda do corpo.

Na leitura, Ta-Nehisi encontra o refúgio para este cerco em que se tornara a sua vida.

Lia vorazmente porque os livros eram a luz que espreitava pelas frinchas da porta, e para lá dessa porta talvez existisse um outro mundo, um mundo que estivesse para lá do medo paralisante que sustenta o Sonho.

Encontra em Malcolm X o pragamatismo ausente de todos os escritos que lhe haviam passado pelas mãos. Pelo seu exemplo de honestidade e liberdade, no discurso e na conduta, sentiu ser possivel escapar à prisão de uma herança quase inexpugnável.

A “Meca – ponto de encontro da diáspora negra”, a Universidade de Howard, fez o resto do trabalho. Com o seu poder inclusivo, um corpo discente e docente de eleição e um campus borbulhante de novidade e diversidade, Coates “via agora que o mundo era mais do que um simples negativo das pessoas que acreditam serem brancas. (...) no nosso corpo político segregado, éramos cosmopolitas. A diáspora negra não era apenas o nosso mundo, mas, de tantas maneiras diferentes, o próprio mundo ocidental.”

A negritude ganha nova dignidade nestes anos de estudo profundo e revelações impactantes.

Descobre a poesia como depuração dos pensamentos até que “sobrassem apenas as verdades frias, aceradas da vida”, a discórdia como verdadeiro poder e forma última de auto-análise, o Amor e a genuína tolerância, como derradeira libertação e redenção.

Com a paternidade e o casamento, depois de deixar Howard sem concluír a licenciatura, a transformação é irreversível. Ao filho, deixa as passagens mais belas do livro.

A verdade é que te devo tudo o que tenho. Antes de ti tinha as minhas perguntas, mas em jogo estava apenas a minha pele (...) Mas um facto simples centrou-me e domesticou-me: se eu caísse agora não cairia sozinho.” “Havia um antes e um depois de ti, e neste depois tu eras o Deus que nunca tive.

Anos depois, descobre por acaso a morte de um amigo da faculdade – Prince Carmen Jones – perseguido por vários estados por um policia à paisana, para depois ser assassinado, com tirosde caçadeira à queima-roupa, a curta distância da casa da namorada que pretendia visitar, supostamente por semelhanças com um suspeito.

A próposito desta morte sem sentido de um pai, amado e respeitado por pares, amigos e familiares, Ta-Nehisi discorre sobre o sistema policial e judicial viciado e corrompido que permite tamanhas arbitrariedades. Insurge-se, comove-se e, como sempre, verte na escrita e no trabalho jornalístico a raiva que o invade.

Prince não fora assassinado por um agente isolado, mas sim assassinado pelo seu país e por todos os medos que o marcaram desde o seu nascimento.” “ A verdade é que a polícia reflete a América em toda a sua vontade e medo, e o que quer que pensemos acerca da política de justiça criminal deste país, não se pode dizer que ela tenha sido imposta por uma minoria repressiva. Os abusos (...) são o produto da vontade democrática.

Com este episódio e a descoberta de Paris, o americano abraça a tranquilidade do anonimato na capital francesa e é para lá que se muda, para uma nova vida familiar e pacata.

O livro termina com um fugaz “momento de alegria”, uma festa em que Ta-Nehisi regressa a Howard e se deixa dissolver numa efusão de corpos e ritmos, encontrando uma ponte para um património comum, independentemente da côr, género, orientação sexual ou política.

A ameaça ao corpo negro é real e constante, profusamente documentada e comprovada. Contra ela, não há escalada, aviso ou prevenção possivel.

Para manter a sanidade, o equilibrio e, em última instância, a vida, a solução possível de Ta-Nehisi foi a escrita, a proximidade com as pessoas por via do jornalismo e o questionamento como caminho e terapêutica.

A sua religião pessoal, que prega a quem o quiser escutar, é a recusa da perpetuidade da retórica excepcionalista enraízada no sistema politico norte-americano, e do pacifismo desde sempre associado aos movimentos dos direitos civis de MLK e dos seus discípulos: vazio, elíptico, em que a condição do negro é de paciente espera por dias melhores e o arco da História se verga para lugar nenhum.

Não vai haver um melhor amanhã e já não basta dar um murro na mesa. É necessário derrubá-la e reconstrui-la, para qur todos tenham lugares equiparados na grande família humana.

O caminho implica inteligência e tenacidade, conhecimento profundo da condição do negro contemporâneo, vigilância (adaptando o sentido bíblico do “vigiai” de Mateus, aqui para escapar à tentação de seguir os impulsos mais primários da violência e da vingança) e intervenção social e cívica.

Nesta última vertente, como em tantas outras, o livro e o seu autor têm sido exemplares.

Com a vitória na categoria de não-ficção dos National Book Awards de 2015 e a concessão da MacCarthur Grant (uma bolsa de 625.000 dólares, distribuida por 5 anos, sem qualquer contra partida, atribuida a personalidades que se destacam no panorama cultural desse ano, também chamada “genious grant” ou “bolsa para génios”), Ta-Nehisi contribuiu deveras para uma já adiada reapreciação da literatura negra.

Os candidatos e vencedores que se seguiram nos prémios literários anglo-saxónicos mais destacados, têm incluído sempre um ou mais escritores negros, contribuindo assim para uma maior representatividade nos palmarés e, consequentemente, nas vendas e na projecção mundial das respectivas obras. Os exemplos são já numerosos, mas destaca-se a vitória do inovador “A Brief History of Seven Kilings” do jamaicano Marlon James, ainda indisponível em português, no Booker Prize de 2015.

Entretanto, Ta-Nehisi Coates foi convidado a ressuscistar uma personagem esquecida da Marvel, um super-herói negro com o sugestivo nome de Black Panther, publicada com grande sucesso de crítica e de vendas, batendo recordes de décadas. 

A frase é batida, mas o caminho faz-se mesmo caminhando. Ta-Nehisi deu um passo de gigante com a sua obra prima e a nós, comuns mortais, resta-nos lê-la e partilhá-la, sucumbindo ao poder singular que a literatura desta estirpe possui de nos tornar parte de uma dissonância estranhamente harmoniosa de vozes, projectadas para um futuro desconhecido, que ansiamos livre e tolerante.

[i] A citação completa é de Theodore Parker (1810–1860), pastor reformista branco do Massachusetts e rezava assim: “I do not pretend to understand the moral universe; the arc is a long one, my eye reaches but little ways; I cannot calculate the curve and complete the figure by the experience of sight; I can divine it by conscience. And from what I see I am sure it bends towards justice."

 

Submissão

Paris teve um ano de cão.

Começou-o atacada na sua dignidade e tão distintos e históricos valores laicos e republicanos, com o horrendo ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo, reduto indefectível de liberdade de expressão e escolha dos conteúdos, independentemente dos seus destinatários, algo quase impossível em qualquer outro país da U.E. ou do outro lado do Atlântico.

Na altura, a tragédia foi uma verdadeira benção para Hollande, finalmente capaz de sacudir a pressão da imprensa, hiperbolizada pela sua inábil e atribulada vida amorosa e pela tímida reacção aos problemas sociais e económicos de que a França padecia. Retomou a liderança, caçaram-se os culpados em directo global e os líderes europeus deram as mãos para a fotografia (com Sarkozy desesperado pelo enquadramento na moldura e a ascendente extrema-direita estrategicamente posta de parte), retratando uma Europa em declínio, sombra dos tempos da sua fundação, despida do seu vigor humanístico e humanitário e vencida pela força dos números, das estatísticas e dos poderes que deles se servem para prosperar.

No chamado “mundo ocidental”, os clássicos “eles é que provocaram/pediram” ou “não tinham nada que ofender outras religiões” foram bem audíveis, contemporâneos aos ubíquos “Je suis Charlie” que pululavam nos fóruns sociais e outros mais ou menos institucionais, rapidamente banalizados e esquecidos, como qualquer outra moda inócua e passageira.[i]

As consequências práticas, para além do luto e do medo dos locais (pela proximidade e absoluta impotência perante a violência dos actos) e do (mal disfarçado) alívio dos vizinhos [ii], foram nulas. Um breve acréscimo de vigilância, logo mitigado e dissipado, na proporção directa com o “vigor interventivo” da chamada “sociedade civil”, esse ente banalizado e apenas comparável com “a Internet” ou “os media”: anónimos, virtualmente inquantificáveis e sem qualquer poder real, embora constantemente citados perante a necessidade de fabricar consensos, com as mais diversas e frutuosas utilidades.

2015 avançou e o fresco europeu tomou tons baços e obscuros.

A inépcia voluntária e displicente da classe dirigente francesa e europeia, completamente desprovida de estratégias e capacidade de liderança[iii], apesar de previsíveis, foram chocantes.

Os atentados de 13 de Novembro revestiram-se de contornos inéditos no século XXI ocidental e europeu. A frieza na execução, os locais e os horários escolhidos, desconcertaram uma Europa já em grande buliço e uma nação francesa, novamente de luto, atingida no seu coração.

O livro que involuntariamente se tornou indissociável desta Paris massacrada, chegou a Portugal há uns meses, mas a sua pertinência e actualidade não se desvaneceram.

Personagem cujo carisma garante projecção mundial a cada novo livro ou palavra pública, Houellebecq conseguiu com Submissão a proeza de ser fortemente criticado ainda antes da publicação do livro (exactamente a 7 de Janeiro, dia do massacre no Charlie Hebdo, pouco depois de ser publicada uma capa em que o próprio surgia caricaturado). Cancelou imediatamente a tournée de promoção do livro e refugiou-se em parte incerta, concedendo apenas uma emocionada entrevista na TV.

Colocar o livro no género da sátira será redutor mas inevitável. Cedo se torna perceptível esse tom, ainda antes de o livro ser aberto.

O título Submissão evoca jocosamente a raíz etimológica da palavra Islão[iv], jogo de palavras progressivamente mais relevante com o desenvolvimento do romance.

A palavra em si surge apenas na página 230, acompanhada por uma das passagens mais esclarecedoras do livro. François, o nosso protagonista, encontra pela primeira vez Robert Rediger, um dos poderosos do novo regime político, “conhecido pelas suas posições pró-palestinianas e que fora um dos principais obreiros do boicote aos professores universitários israelitas”, que lhe explica, com um exemplo literário, o fascínio da filosofia holística subjacente ao Islamismo.

“- É a submissão (...) a ideia espantosa e simples (...) de que o máximo da felicidade humana reside na submissão mais absoluta.(...) para mim há uma relação entre a absoluta submissão da mulher ao homem, tal como descrita em “História d´O”[v], e a submissão do homem a Deus, tal como é encarada no Islão.(...)o islão aceita o mundo, aceita-o integralmente(...) para o islão, a criação divina é perfeita, é uma obra-prima absoluta.”  

A demanda de uma identidade na era da solidão, juntamente com a reflexão sobre a Religião e a triste angústia existencial perante a omissão de um referencial filosófico e sociológico verdadeiramente estruturado e estruturante, são traços comuns a toda a obra do francês.

Submissão acrescenta novo mosaico a esse painel, onde pairam os demónios que a França insiste em ignorar e Houellebecq nunca se fez rogado em exorcizar, nomeadamente os desafios colocados pela diversidade cultural, étnica e religiosa (com o passado colonialista sempre em fundo), a vacuidade da classe artística e mais mediática (os famosos são tratados por tu, como qualquer outra personagem) e o hiperbólico consumismo pós-moderno.

Neste livro, inadvertidamente (ou talvez não) e com as devidas distâncias, é perceptível a alusão ao colaboracionismo infame do Governo de Vichy com os nazis, durante a II Guerra Mundial. É transversal a todo o romance, na silenciosa aceitação das circunstâncias e das mudanças, mediante a conveniente retribuição, nas palavras por dizer ou nos longos solilóquios mentais de François, impulsos e ensejos inconfessáveis, mesmo entre amigos.

A Religião, justificação para algumas das maiores atrocidades experienciadas pelo ser humano, é o pretexto para Houellebecq operar uma mudança ficcional de paradigma, colocando uma hipótese ao leitor: e se o Islão fosse uma realidade viável no Ocidente?

Inteligentemente, o Islão é ficcionado como enquadrado (e enquadrável) nos parâmetros democráticos ocidentais. Para muitos, tal poderá soar a falso, vindo do mesmo homem que, há uma década, foi absolvido pela justiça francesa de acusações de incitamento ao ódio religioso e racial, ao declarar publicamente que o Islão era a religião mais estúpida.   

Todavia, o homem por detrás de “Submissão” é hoje mais ponderado.

Há um ano atrás, em entrevista à The Paris Review, a primeira acerca do livro, revelou que, perante todas as mortes com que tinha lidado (os seus pais, o fiel cão), se tinha incompatibilizado com o seu ateísmo. A negação da existência de uma ordem cósmica ou de um criador era-lhe agora insuportável, partindo daí a ideia para o livro.

Como Auguste Comte, sua grande influência, de uma mundividência puramente científica, evoluíu para a crença de que a sociedade não sobrevive sem religião.

O título do projecto inicial era “La Conversion” (a conversão) e descrevia o caminho de um intelectual até ao catolicismo, seguindo os traços biográficos de Joris-Karl Huysmans, em cuja obra se tinha especializado. Cedo concluiu que a ideia não resultava.

Ao tentar colocar-se na pele de um muçulmano, entendeu que faria sentido a existência de um partido em que este se revisse. Analisando a situação política dos muçulmanos no Ocidente, constatou ser-lhes completamente alheia e distante: não se reveêm na direita nem a direita se revê na sua cultura e a esquerda, pela sua óptica, roça o libertinismo.

Os obstáculos à verosimilhança de tal situação eram óbvios. A perspectiva viciada que os media criam acerca desta religião, retratando cada novo convertido ao islamismo como um jihadista (esquecendo uma larga maioria que não o faz), assim como os grandes cismas históricos existentes no seu interior (do Islão), inviabilizariam à partida um partido nestes moldes.

A solução simples para esta aparente contradição, encontrou-a na História que, ciclicamente, nos relembra a importância do homem providencial, o líder carismático e mobilizador. Mohammed Ben Abbes é a personagem-chave do romance, embora nunca surja no mesmo. A sua Fraternidade Muçulmana, partido que acaba por vencer as eleições em França, é, à sua imagem, concicliador e iconoclasta.

A fundamentação política e ideológica do romance poderá ser falsamente interpretada como um alerta, pelo temor, da possibilidade de o Islão tomar as rédeas das instituições francesas. Segundo o autor, desta feita ao New York Times, o objectivo foi bem distinto.

No contexto certo e com a adequada liderança, numa sociedade profundamente laica e republicana como a francesa, o Islão teria uma maior possibilidade de vingar do que o catolicismo, graças ao seu carácter mais holístico.

Para além disso, para Houellebecq a conversão é um acto de esperança numa nova sociedade, normalmente sem motivações sociais, apesar de o livro apresentar o reverso dessa medalha.

*

Com esta bagagem, regressemos a François.

O professor, misantropo proficiente e profissional, com quinze anos de uma carreira para a qual nunca teve vocação, encontra na vida académica o seu habitat preferencial.

No entanto, é precisamente com o inicío da sua vida profissional que começa a sentir o peso absurdo da solidão, perdida a rede de contactos mantida durante os anos de estudo na faculdade.

Entre dislates sobre o quotidiano, reflexões existenciais típicas de um quarentão solitário e irrelevantes disputas filosóficas com os seus pares, encontra nas alunas a companhia perfeita para o tipo de relação amorosa que lhe convém: fugaz, sem qualquer compromisso, fisicamente satisfatória e com a leveza emocional de um romance de cordel.

Chamava-lhes “namoradas-mais ou menos à razão de uma por ano.”, o correspondente ao período lectivo, e encarava estes relacionamentos como “estágios”, que se sucederiam “até desembocarem, em apoteose, na última relação, aquela que teria o carácter conjugal e definitivo, e conduziria, via concepção de filhos, à constituição de uma família”.

Até que conhece Myriam, e cedo percebe que nada seria igual depois dela. Apesar de ter alguns namoricos depois de também ela o deixar, sente que o inexorável peso da idade e o tédio da rotina e da previsibilidade lhe alteram os padrões que tanto estimava, desiludindo-se também com estas relações episódicas.

O meio universitário apenas lhe garantia estatuto social e um emprego estável. As críticas a toda a artificialidade que o rodeia são abundantes, desde a virtualmente inverificável origem das teses, aos egos alimentados pela falsa aparência de um saber acumulado, raramente real.

Começam a surgir indícios de graves problemas sociais logo nas primeiras páginas, com facções rivais[vi] à espera do pretexto certo para se confrontarem, impedimentos e dificuldades aos professores israelitas e rumores preocupantes de agressões a professores em plena universidade.

No início do processo eleitoral, a vitória da Fraternidade Muçulmana era ainda uma hipótese remota, embora isso pouco interessasse ao nosso anti-herói, devastado perante a notícia de que a “sua” Myriam ia regressar à sua Israel natal, receosa do que se antecipava ser uma revolução social e política onde as mulheres da religião “errada” seriam ostracizadas.

François sentia-se “tão politizado como uma toalha de mãos”, mas mantinha-se consciente da “atmosfera estranha, opressiva, uma espécie de desespero sufocante, profundo”, altura em que “muitos foram os que optaram pelo exílio.”

A violência banaliza-se, juntamente com o conformismo de imprensa e inteligentzia, e o sentimento geral é de impotência e desresponsabilização, inclusive das autoridades policiais. O inevitável paralelo com a Alemanha do 3º Reich, na década de 30, surge estampado na página 53: “Este tipo de cegueira, aliás, nada tinha de historicamente inédito: encontra-se por exemplo, em todos os intelectuais, políticos e jornalistas dos anos 1930, unanimemente convencidos de que Hitler «acabaria por voltar à razão».”

Neste buliço, tal como Huysmans, séculos antes, o nosso protagonista decide dirigir-se para o campo, em busca de algo que nem o próprio sabia identificar. É aí que, como Paulo de Tarso no deserto, tem uma revelação, momento-chave do livro, em que, perante a Madonna Negra de Rocamandour, assume em definitivo a sua incapacidade de seguir o caminho do seu autor-referência e acaba por regressar à civilização, rendendo-se à evidência de ser apenas mais um na multidão de conformismo e conforto perante a irresponsabilidade da abdicação e da submissão ao novo status quo.

*

Nas páginas 46 e 47, a pretexto de um plano de abordagem de François ao seu eterno estudo de Huysmans, Houellebecq apresenta-se (via a tão em voga metaficção) com uma espécie de súmula da sua ficção/obra, convidando-nos a assistir às glórias e infortúnios do Mundo através do seu olhar, apesar de todo o desconforto que possamos sentir.

“No entanto, a sensação negativa, a sensação de estagnação, de lento declínio, não suprimem completamente o prazer da leitura, porque o autor teve a seguinte brilhante ideia: num livro condenado a ser decepcionante, conta a história de uma decepção. Deste modo, a coerência entre o assunto e a maneira como é tratado aumenta a adesão estética, causa algum tédio, em suma, mas incita à continuação da leitura, e percebe-se que não são apenas as personagens que se sentem abandonadas durante a sua desoladora permanência no campo, mas também o próprio Huysmans. (...) O que permitiu (...) que Huysmans (...) saísse do impasse foi uma fórmula simples(...): adoptar uma personagem central como porta-voz do autor, personagem cuja evolução poderemos acompanhar em vários dos seus livros. (...) É óbvio que não é fácil, para um ateu, falar de uma sucessão de livros cujo assunto principal é a conversão religiosa; (...) Na ausência de verdadeira adesão emocional, o sentimento que aos poucos prevaleceu no ateu confrontado com as aventuras espirituais (...), foi, infelizmente, o tédio.”

 Houellebecq confessa encarar as personagens como projecções e nunca auto-retratos, meras hipóteses para um futuro alternativo. Por exemplo: será que, estudando Huysmans e literatura, poderia um dia ser professor universitário?

 Talvez a impossibilidade desse futuro justifique a tristeza e a solidão latente em toda a sua obra literária. Mas neste Submissão, a tristeza é relegada para segundo plano, perante uma resignação quase obscena, que se estende ao plano emocional.

A derradeira frase do livro é um claro e brutal “Je n'aurais rien à regretter”.[vii] François, no final, ficou vazio, sem nada nem ninguém de que sentisse saudades, perante a religião, o passado ou o amor, pilares da existência humana como a conhecemos.

Mas a base da obra é bem mais iconoclasta do que à primeira leitura poderá parecer. Para Houellebecq, o livro descreve o fim da filosofia iluminista, sem qualquer pertinência actual, mera geradora de infelicidade e de uma sensação de vazio, recuperando-se assim a natural tendência humana para o metafísico.

Houellebecq defende que nos encontramos hoje numa época que Comte chamou de Idade Metafísica, interrompida com o final da Idade Média. É simbólica a despedida de uma civilização, dos seus valores, uma viragem para um futuro ainda incerto, mas já, de certa forma, claro nos seus desígnios.

Como perfeito agent provocateur que sempre foi, tudo isto poderá não passar de uma provocação, perdoe-se o pleonasmo. Mas aqui, o francês parece ir mais além, defendendo um futuro que lhe parece realista e estendendo este exercício quase profético a todo o projecto europeu, que considera um fracasso politico, estratégico e, acima de tudo, democrático[viii].

Apesar de ter completado em Submissão o que em muito se assemelha ao clássico romance de ideias, Houellebecq é um homem do seu tempo, consciente da finitude do seu papel, quer como escritor-pessoa, cidadão francês, europeu e do Mundo em 2016, quer como escritor-espectro, inevitavelmente projectado nas personagens que cria, rejeitando responsabilidades sociais ou outras, imputáveis meramente pela sua obra publicada.

Por ironia, é exactamente essa obra que o contradiz, retratando os intelectuais franceses como absolutamente passivos e irresponsáveis, praticamente inimputáveis sociais.

Ninguém gosta de ser apanhado em flagrante, e o caso agrava-se quando um misantropo quase profissional se expõe, na fragilidade da sua argumentação, como afinal apenas um de nós, inerentemente múltiplo e dissonante.

Em última instância, são os livros que desafiam as nossas concepções, aqueles que mais tarde ou mais cedo recordamos, quando a realidade se cruza com a ficção. Houellebecq tem o dom de usar a cultura que o rodeia para criar essas “pedradas no charco”, cujas ondas inevitavelmente nos tocam, criando admiração ou repulsa.

Dizia Pessoa, melhor que ninguém: “Sentir, sinta quem lê!”. Porquê contradizê-lo?

 

[i] As manifestações de apoio da altura assumiram-se como verdadeiros estudos sociológicos, meras oportunidades renovadas para, entre sorrisos e gargalhadas, pôr a conversa em dia e mudar o cenário para as publicações de Instagram, o que não deixava de ser simultaneamente chocante e tranquilizador. Afinal, tudo continuava exactamente na mesma.  

[ii] Pela distância, mitigada pelos meios de comunicação, perfeitos e quase mecânicos emuladores de empatia em série, permitindo, com um clique e um hashtag, a mais perfeita e cordata inação.  

[iii] Não apenas para o âmbito económico (em que habilmente contornou os Tratados por forma a garantir a sobrevivência do Euro), como para a garantia de uma mais efectiva segurança e o estabelecimento de uma sólida e exemplar cidadania e humanismo europeus.  

[iv] A palavra árabe islam, que está na raíz de Islão, significa literalmente submissão (à vontade de Alá), pelo que é a única designação de uma religião sem qualquer ligação a uma pessoa ou grupo étnico, mas antes a uma ideia central.  

[v] Pensem em “As 50 Sombras de Grey” e juntem-lhe melhor escrita em doses generosas e uns pozinhos de Marquês de Sade. Sim caríssimos, a Sra. E. L. James não descobriu a pólvora...

[vi] I.e. o movimento identitário (anti semita e aparentemente nacionalista) e os movimentos dos jovens salafistas.

[vii] Que no livro surge erradamente traduzido (salvo melhor opinião) como “Não teria nada de que me arrepender”.

[viii] NYT, 13 de Outubro de 2015

 

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