Em dois sítios vi quadros do pintor Mark Rothko

Em dois sítios vi quadros do pintor Mark Rothko

Foram sempre pinturas com duas ou
três grandes manchas quadradas de
cor ocupando todo o espaço da tela

Em São Francisco vi o No. 14 no topo a
vida do laranja vai-se enxaguando pelas
bordas no castanho incolor do fundo e na
parte abaixo um acompanhante azul soturno
celebra a pesada gravidade do quadro

Em Londres vi nove mais lúgubres
Seriam para um restaurante nova-iorquino
não fossem os tons tão pesados
o pouco contraste das camadas

Não sei de arte nem de mim para saber
porque gosto dos quadros do Mark Rothko

Há outros em que sei olhando as formas
desenhadas há o desenlace está algo para
ler e saber algures entre a moldura e depois
decido mas estes são poemas muito crípticos
o desafio que devia derrotar a minha literacia
e que talvez o faça estando eu no chão com
a náusea da ignorância olho para a parede e
rio-me muito enternecido muito agradecido
o laranja sobre o azul mais escuro o que será
o que ainda poderá ser porque nunca foi
nada e nunca ninguém o soube mesmo

Disseram que o pintor Mark Rothko era um
expressionista abstracto e que ele rejeitara
a classificação eu acho que estava assustado

wabi-sabi

wabi-sabi

O meu corpo partido em suas
rasgadas partes vísceras aguentando
uma alma como pode

wabi-sabi

O meu ex-deus que salva e mata
dá a torrente do vinho tinto e puro
procurando à noite pelas
ombreiras egípcias a mesma cor

wabi-sabi

Uma mulher deitada comigo de olhos
colados e interior da boca desasseado
faz uma cova assimétrica no colchão para
onde gravita o despojo da minha humanidade

wabi-sabi

O meu poema amalgamado com a
pretensão decrépita de escorrer
num dia de uma primavera que fosse só minha
pelos olhos sagrados de quem hoje
me acena com o cânone

[Cheiro a maldade no ar como se]

Cheiro a maldade no ar como se
fosse um outro gás tão real
como a hipótese de ser eu a
fazer as coisas malvadas deste lugar

- Não pode ser no avesso o odor
fruste dos sebastianistas que
vão caindo nas valas da cidade?

Mas como poderia tal estar numa
mistura com a própria maldade
com a presença incolor de uma praga
pesada e escancaradamente humana?

Essa confusão vem do ardil
que sempre preparaste ao sonho
ao novo sol que acorda trazendo a
pureza de um perfume fresco e brando
que limpe toda a cúpula da cidade

Subsisto-me nesta possibilidade
nova da linha que termina o céu
ainda que me entupa sempre as
narinas o infausto tempo presente

[Vocês pensam que é fácil esta merda?]

Vocês pensam que é fácil esta merda?

há muitas pessoas como esta neste 
bairro muitos homens como este
o casaco verde ruço trepa pelas 
costas quando o resto do corpo se
recolhe sobre a mesa para poisar
o copo servido de vinho tinto
ralha mais alguma coisa sem jeito 
uma frase trivial e desbotada
ainda um som qualquer que vai
sem esperar grande conversa mais 
como um ronco em que adivinho:
vejam saí de casa abri a porta e
desci mesmo aquelas escadas
tirou a boina acendeu um cigarro
a que vida estarei assistindo?
a soleira do café deste bairro 
parece-me um palco digno como os 
que têm os teatros de Lisboa mas falta 
à cadeira malfeita onde me equilibro 
a pompa dos assentos forrados 
daquele vaidoso veludo vermelho 
a que vida estarei assistindo e 
quanto tempo ainda durará?

"Olhem bem como poisou a tinta"

Olhem bem como poisou a tinta
Saturno é senão a vítima castigada por um
génio pior que aquele que por ele espalha
o motivo do nosso horror precipitado

É verdade que os seus filhos
não podendo sequer sufocar o
primeiro choro escorrem-lhe já
desbordados pela beiça apavorada
mas a sorte é principal nesse sangue
juvenil e primordial sangue de onde
pende a cabeça miúda decepada
sangue vertendo finamente até aos
cavados feitos pelo gigante na carne
alva terna e maculada de inocência

Saturno curva-se ante uma pena eterna
o crime escorregadio da moral e do poder
cometido pelos homens todos do mundo
será justa a absolvição para um infanticídio
perdão para a fatalidade absoluta?

Olhando para o meneio do olhar lutuoso
salgando a carne húmida com as lágrimas
ferventes fala-nos do caos da tormenta
feita em seu rosto e esgota-se a divindade
nessa poluída fabulação de virtude

Vai sem castigo porque tu és só a pequenez
semeada nos homens e inevitavelmente
Júpiter dará a sua volta professa no céu infinito
vindo salvar essa tua tirania da já seca imortalidade