O "E ENTÃO?!" CONTRA A SIMPLIFICAÇÃO

Jackson pollock imitation by night hawk, RichardGeorgeDavis.

Jackson pollock imitation by night hawk, RichardGeorgeDavis.

Ontem a minha filha Maria achou bastante irrelevante uma conversa sobre a metafísica do universo estar por trás das nossas concepções morais. Disse-me algumas vezes, “e então?” “E então?!, respondi-lhe, Então essa é uma condição da humanidade, seríamos totalmente outros sem a espiritualidade polarizada entre o bem e o mal.” Sim, mas senti logo que a minha objecção era infinitamente mais fraca do que a sua. No “E então?” dela estavam contidos todos os princípios críticos do iluminismo, a inelutável investigação racional sobre as condições de possibilidade da verdade, por um lado, e a avaliação intransigente da utilidade, por outro.[1]

Esta aparente puerilidade, combate fingido entre gerações, mostrou-me como talvez o mundo adulto, por trás de uma certa sofisticação semântica, seja bem mais simples do que o dos adolescentes. O “E então?” esmaga toda a sobranceria, pedanteria discursiva com que nos escondemos e simplificamos a vida. Por vezes sem o sabermos, somos simplificadores sistemáticos, repartindo os horizontes de sentido entre amigos e inimigos, bem/mal, verdade/mentira, gosto/não gosto, metafísica/materialismo… Procuramos escapar à fatalidade das ligações múltiplas reduzindo confrangedoramente a complexidade da vida.

Surpreendentemente, escondemos muito disso na palavra “objectividade”, os negadores da complexidade são os primeiros representantes, às vezes com medalhas e tudo, da objectividade. Paradoxalmente, ela faz-se quase sempre acompanhar, na ciência como na filosofia, de demiurgos secretos que comandam o destino na penumbra. As leis que definem demonstrações, os postulados que sustentam teorias, a lógica que testa a coerência argumentativa…, são outras formas de apelarmos à Coisa que nos esconsos do Universo conduz o movimento da matéria e do espírito.

Ao pé disto, pelo menos nesta noite de insónias (é decisivo sabermos a que horas se escreveu), acho mais sensato pensar em Nietzsche como agente secreto da minha biografia (Baudelaire escolhia o poeta). Desenganem-se, saltar assim de um só golpe da teoria do conhecimento para  a da produção textual tem a sua razão, objectiva, de ser.   


[1] Atenda-se a que o “E então?” não é uma indiferença laxistas em relação ao que se discute, não é o je-m’en-foutisme francês (traduzido, sem contexto, por “estou-a-lixarme”, mais o “ismo”), niilismo popular dos preguiçosos ou irrevogáveis desiludidos. O “E então?” é afirmativo, questiona, obriga a esclarecer, explicar, justificar... É neste sentido que o uso aqui.

JUÍZOS DE GOSTO EM KANT E NO FACEBOOK

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 A partir de uma ilustração de Dasault para o Le Monde de 4 de Janeiro de 2014

Um pouco de juízo de gosto [os gostos devem-se discutir]

 

Começo por recorrer a Kant porque foi o pensador que mais pensou o juízo de gosto antes da contaminação universal do “gosto” facebookiano, percorro rapidamente a Crítica da Faculdade do Juízo [de Gosto].

1 (do ponto de vista da qualidade)- Diferente do agradável e do bom, que agradam aos sentidos, o belo kantiano resulta de uma representação do objecto que nos traz satisfação (o sentimento contrário resulta do feio). O belo é assim fruto de uma contemplação não empírica, i.e., são as formas e não o conteúdo material que satisfaz o sujeito. Por isso, a satisfação é desinteressada, na contemplação estética não deve entrar em jogo qualquer interesse. É um prazer livre, “um favor”. Daí, §5, “O gosto é a faculdade de julgar um objecto ou um modo de representação sem qualquer interesse, através de uma satisfação ou uma insatisfação. Chamamos belo o objecto de uma tal satisfação.” Podemos questionar este “desinteresse”, foi isso que fez, entre muitos outros, Nietzsche (para quem, citando Stendhal, a beleza era uma “promessa de felicidade”, totalmente interesseira). Mas ele serve bem o propósito de permitir a universalidade do juízo estético, já que se, pelo contrário, houvesse interesses particulares sobre os objectos como se poderiam compatibilizar os gostos de sujeitos com interesses diferentes?

2 (do ponto de vista da quantidade)- Porque a satisfação é desinteressada, todos a podem sentir (§6). Uma universalidade que não assenta em qualquer princípio conceptual determinante, os juízos de gosto são reflexionantes, partem do sujeito não do objecto, ajustam-se ao particular, não ao universal, são indutivos, não dedutivos. A sua universalidade é sem conceitos (“O belo é aquilo que apraz universalmente sem conceitos” §9), imaginação e entendimento trabalham livremente sem a necessidade dos conceitos, o juízo de gosto não é, pois, cognitivo.

3 (do ponto de vista da relação)- Kant interessa-se sobretudo pela beleza natural, e sobre ela não sabemos dizer qual é a sua finalidade, tem, como diz, uma “finalidade sem fim”. Por isso não se pode identificar beleza a perfeição.

4 (do ponto de vista da modalidade)- se o juízo de gosto é universal, quem declara algo belo deve imaginá-lo belo para todos. Para isso é preciso uma comunidade sensível a priori, Kant defende o postulado de que existe um “senso comum” (sensus communis) que permite, sem obrigar, que o belo seja universal.

 

O polegar hirto do Facebook [Gosto, logo vivo!]

 

Há já imensos estudos sobre as vantagens e desvantagens, sociais, psicológicas, económicas, relacionais, cognitivas... do Facebook (alguns disponíveis na Web). Vou só descrever uma impressão (parte dela), que pode, porém, ser mais exacta (na sua condição de protótipo fetal) do que coisas sérias e dispendiosas (talvez também fastidiosas), ainda estamos a atirar setas, a rede social é demasiado imberbe e a espécie que a frequenta demasiado heterogénea para termos já demonstrações sobre os seus efeitos nos utilizadores.

Começo por uma declaração de interesses múltiplos (sou bem pouco kantiano, embora goste muito de o ler): só frequento medianamente o Facebook, tenho, para a média nacional, poucos “amigos”, e em geral não me ligam muito. Costumo também “esconder” alguns campeões do polegar positivo (bem sei que é um heresia), por inveja ou outro sentimento mesquinho ainda não catalogado. Além disso, vejo-lhe a enorme utilidade de me manter em contacto com pessoas de quem gosto e com as quais não consigo estar presencialmente, em geral devido ao actual impulso estranho para a emigração.

Dos campeões dos Like, dos poucos que guardo visíveis, questão de saber onde desagua a actualidade, um deles há uns dias noticiou o óbvio (para o clube refinado dos acontecimentos sublimes): a exposição do museu de Arte Antiga (“Rubens, Brueghel, Lorrain. A Paisagem Nórdica do Museu do Prado”). Mas acrescentou aos três génios que realmente lá estão, como se faltasse brilho no post, o nome de Rembrandt. “Olha, disse eu, o oráculo enganou-se”, mas o bando de fieis que o segue, proletários do clicar, não mudou uma vírgula ao hábito de “gostar” (quantos terão ido à exposição?). É verdade que o erro não é de palmatória, “pequeno lapso sem importância”, dirão alguns leitores que me julgam parvamente severo e invejoso (“não gosto”). Enganam-se, na realidade, até por condição de investigação filosófica, sou muito tolerante com os lapsos (sem eles viveríamos ainda nas cavernas). Sou, pois, de uma indulgência olímpica em relação aos desvios espontâneos da verdade (na qual, aliás, não acredito). Neste caso, o que ataco é mais uma variação da Razão do Rebanho, da necessidade do que pensamos e sentimos ser validado pelos outros, como se a correcção ou importância do que dizemos dependesse de uma confirmação o mais alargada possível. Daí que Rembrandt tenha aparecido ao lado dos outros três pintores paisagistas, aumentando a relevância do post. Imaginem se isto se pega aos pensadores que fazem os horizontes de sentido deste século, imagem, mutatis mutandis, James Joyce a escrever sujeito à ditadura do Like.

O Facebook que não resultou de qualquer trabalho de inteligência profunda (trata-se de uma acaso feliz, de um lance de dados que usou a mão de Mark Zuckerberg para constituir um capricho de época), veio amplificar a nossa tendência para a tribalização do pensamento, uniformizar os juízos de gosto, unificar visões do mundo. Mesmo os “enfants terribles”, nos mais sinceros dos seus gestos, querem polegares para cima. (Surpreendentemente parece que nos aproximamos do sensus communis kantiano, mas na diferença da união se fazer agora porque se deixou de pensar, ou se pensa pouco livremente, quando ele, arauto do saper aude, pretendia precisamente o contrário).

Trata-se de uma espécie de ditadura auto-imposta, auto-censura rasteira... Ao mesmo tempo, o Facebook reformulou quase até à evanescência a noção de amizade. A superficialidade das relações facebookianas nada têm que ver com a soberania da amizade de que falava Montaigne quando se referia ao seu amigo La Boétie, dizendo: “Esta amizade de que falo é indivisível, cada um dá-se inteiramente ao seu amigo, de tal forma que nada resta para pôr noutro lado.” Ao pé disto, os nossos “amigos” do Facebook, quando não são mais do que isso, tornam-se irrelevantes. E a luta assanhada por aumentar o pecúlio, inconscientemente pletórico, é o oposto do que dizia Aristóteles: “Não é amigo quem é amigo de todos.” A amizade implica dedicação, confiança, sinceridade, intimidade e muito tempo, não é, pois, possível ter dezenas, centenas de “amigos”. Os amigos do Facebook, quando não se complementam nos abraços e beijos tangíveis, são bombons falsos, embrulhos vazios.

 

Decadência do Facebook [oh, meu deus!]

 

Felizmente já li vários artigos proféticos sobre a decadência do Facebook, os mais jovens preferem outras redes sociais (o Facebook é “muito cota” e há “falta de privacidade”, dizem. Mas creio que se trata apenas da implosão que normalmente se segue às dominâncias pletóricas, quem quer seguir o que todos seguem?), ele estará em vias de se deslocar para o passado. Depois tornar-se-á um case study universitário e será lembrado, e vendido, nas feiras da ladra (analógica e digitais), haverá os saudosistas do “no meu tempo”, miniaturas para decorar as estantes e talvez, o pindérico teima em regressar, pendurá-lo no retrovisor ou colocá-lo no vidro traseiro do carro. Se tudo correr bem tornar-se-á uma elegância vintage ou retro, capaz de dar boa consciência aos utentes dos lares da 3.ª idade. É verdade que depois dele corremos o risco de regressar, desiludidos, aos concursos de taberna sobre a melhor maneira de se ser pessimista. E sei, com a antecedência de quem lê a sina, que o pessimista-vitimista, i.e., aquele que o é por culpa do Outro, ganhará logo à partida uma certa vantagem. Agarrado, aí a meio da competição, pelo pessimista-cínico, o que diz que só cultivando e contribuindo para que o péssimo se desenvolva se pode continuar a trabalhar. É que, numa bela expressão de Peter Sloterdijk, “Somos as pessoas contra as quais os nosso pais no preveniram.” (Crítica da Razão Cínica)


Para uma Crítica da Razão Vitimista

Gosto, sem reservas, deste provérbio italiano: “Os tempos são duros mas são modernos.” Sopro de sentido, mais rico do que o “materialismo dialéctico”, importante deus ex machina do século XX, traduz metade do actual centro bipolar: o cinismo. Peter Sloterdijk define-o, distanciando-o do moralismo iconoclasta de Diógenes no seu tonel, como “um caso limite de melancolia que consegue controlar os seus sintomas depressivos e manter-se mais ou menos capaz de trabalhar.” (Crítica da Razão Cínica,  p. 31). A outra metade do falso centro é o vitimismo. Reconheço que ele é tão antigo como o sapiens sapiens (parece mais uma gaguez do que um marcador científico), somos desde sempre vitimistas, até porque no princípio, contra Rousseau, não havia qualquer idílio, a vida era brutalmente dura. Daí a necessidade de, além dos múltiplos mecanismos de resiliência, nos envolvermos numa certa auto-comiseração mitigante do niilismo que os golpes do acaso (podia ser uma terrível dor de dentes ou condições climáticas propícias à fome) lançavam sobre a humanidade. A excepção veio sempre de entorses culturais que valorizavam a honra e a coragem, um artificialismo, mesmo quando se dizia naturalista, como em Esparta, ou de seitas religiosas tanatofílicas (a libertação pela morte inverte o processo de vitimização no de culpabilização, redimido na morte).

Mas talvez hoje, herdeiros da última utopia panglossiana, manifestada nos discursos e em algumas realizações empíricas do Estado de Bem Estar (ou Estado Social), abusemos dessa medicina, um pharmakon que por excesso de uso passou de remédio a veneno. Por isso, devíamo-nos armar de uma Crítica da Razão Vitimista para esmiuçar algumas subtilezas que compõem este modus vivendi. Enquanto isso não acontece (se alguém já a escreveu, avisem-me), avanço com certas linhas de sentido para podermos desconstruir o primeiro vitimista que nos aparecer (com o cuidado de não ser o nosso reflexo no espelho).

Num pequeno exercício de objectividade, destaco nele as seguintes características: 1- segue a máxima de Jean-Paul Sartre “O inferno são os outros”. 1.1- Não porque tenha andado na guerra ou precise dessa expressão para fechar o círculo filosófico “do em-si e do para-si”, mas porque é uma sublimação básica da sua própria impotência. 2- O “outro infernal” é uma figura ou força opaca, o vitimista não perde tempo em análises, basta-lhe escolher um outro, às vezes plural, para “bode expiatório”. 3- Alia-se facilmente a outros vitimistas, tem tendências tribais, sofre atrozmente com a solidão. 3.1- Como seria de esperar, enoja-o todos quantos se atrevem a duvidar da sinceridade da vitimização, sobretudo os “espíritos livres”. 4- Mas, paradoxalmente, a sua impotência existencial não se reflecte necessariamente na performance sexual (daí continuar a reproduzir-se). 5- É manhoso e vingativo (finge-se frágil, pede piedade); mas se lhe dão poder esmaga o primeiro que lhe faz frente.

Actualmente, o vitimista profissional, ocupação mais disseminada do que a de advogado ou professor, aumentou tanto a frequência e intensidade dos lamentos, da auto-desculpabilização e da acusação de terceiros pelos males recebidos que é impossível distribuir a justiça pelo mundo. Noutros termos: uma boa dose de vitimização permite aos mecanismos sociais decidir sobre a inocência ou a culpabilidade, e assim distinguir com algum critério os canalhas dos anjos. Pelo contrário, quando quase todos se julgam vítimas (do Passos, do Sócrates, do Paulo, do Jerónimo, da Ângela, dos Americanos, do Capital, das Multinacionais, do chefe, do professor, da polícia, da Globalização, do árbitro, do vizinho, da Crise, do Norte, dos imigrantes, das mulheres, dos homens, do Euro, do Futebol ou da falta dele, da Maçonaria ou da Opus Dei, das leis da física ou das da biologia... Em paroxismo vitimista, um conhecido meu, especialista de práticas conspirativas na Web 2, diz que tudo não passa de uma estratégia dos Duques de Bragança para reeditarem o Absolutismo Monárquico.), além do chumbo emocional que esmaga toda a vontade de viver fora do “ai-jesus”, deixa de se poder fazer justiça porque tudo parece uma sopa turva onde não se distingue, mesmo comendo com o máximo cuidado, os bons dos maus elementos. É a amalgama do "nada vale porque tudo vale". O mundo inteiro parece inclinado a fazer-nos mal, e por isso aos sintomas depressivos do cínico Moderno junta-se a paralisia do ego sob o efeito narcótico da contínua perspectivação do outro como a razão do nosso sofrimento, ou seja, do vitimista.

Do Inútil e da Sobranceria

Gilbert Garcin, Funambuliste, 2002

Gilbert Garcin, Funambuliste, 2002

Frase lançada no comboio: “Ontem fui ao chinês comprar uma coisa que não serve para nada”. Num alien de inteligência média (na Escala Cosmológica das Inteligências Quânticas, esse nível colocá-lo-ia muito acima da inteligência humana actual), este paradoxo seria sintoma da nossa decadência début de siècle, desfecho irredutível de uma belle époque onde a máxima democratização da comunicação e a Pop music eram os impulsos sagrados conduzindo aos reinos da paz e da prosperidade (separo-os para se poder nomear two boys for two jobs).

Ir ao chinês comprar o inútil aparece como o paroxismo do consumismo autofágico, mas há uma subtileza pragmática que ainda não contei: a frase não continha qualquer censura crítica nem foi apresentada como um placebo que recuperasse o sentido no resultado que não tinha na essência (“compre o inútil e verá que deixa de ter dores de costas, ou desaparece essa terrível sensação de exclusão social!”, diria um guru do marketing). Sem essas vias de compreensão, pareceu-me perceber uma espécie de sobranceria classista de quem frequenta essas lojas de imitação barata, contaminadas pela volatilidade de polímeros sintéticos, mas se quer demarcar de quem lá vai por razões vitais. Explico melhor: há uns tempos havia os frequentadores de museus ou acontecimentos de “alta cultura” que relatavam esse modus vivendi como suficientemente blasé para com certo cinismo dizerem, sem que percebamos ainda o verdadeiro sentido: “frequento a alta cultura porque sou da alta sociedade e frequento a alta sociedade porque sou da alta cultura”. Isto deu-se num tempo em que os artistas eram ricos, mas a indigência proverbial dos génios do belo parece regressar agora com um vigor incontrolável de vingança, e já ninguém frequenta patavina.

Do mesmo modo, há quem tenha Facebook mas “não ligue”, tenha um clube de futebol mas “não saiba o que se passa”, um doutoramento mas “acuse os títulos académicos de serem os últimos resquícios da verticalidade hierárquica tribal”. Noutros termos, parece que vivemos “dentro” sempre a fugir para “fora”, uma espécie de novo funambulismo, não por desconfiança matricial, mas com o medo infantil da vulgarização, de não nos distinguirmos do movimento, poderoso mas acéfalo, das massas. E este talvez seja o marcador cultural que mais tarde os historiadores destacarão do nosso tempo: estamos presos às “redes sociais” e às “lojas dos chineses” mas inventamos inúmeras subtilezas para negarmos essa imersão, náufragos a tentar voar.